A rábula da excomunhão

Jorge Messias
O desgaste da aldeia global entrou em fase de aceleração. O proclamado capitalismo neoliberal tanto roubou à área social, de tal modo a enfraqueceu que revela agora, com meia dúzia de abanões, a sua incapacidade para dar resposta às contradições que a sua sofreguidão criou. O «furacão dos pobres» varreu do mapa Nova Orleães: a administração Bush abandonou os cidadãos pobres e chamou tropas do Iraque, com ordens para matar. Em Inglaterra, a polícia de Estado respondeu a um atentado (que continua por explicar), com crimes terroristas. Em Portugal, prosseguiu o caminho para o empobrecimento geral, ardeu a floresta e o desemprego disparou. O Governo fecha os olhos, diz que tudo vai bem. O que nos faz falta, declaram os governantes, são os pactos históricos e a metanóia, o sobressalto sagrado que muda o coração dos pobres e dos trabalhadores.
Matar à fome e escurecer as mentes são formas de violência extrema. Mas o capitalismo vê-se obrigado a recorrer a esses métodos. Já não tem cenários virtuais atrás de que se esconda. Em Nova Orleães como na Rússia, na Chechénia como no Iraque, nos campos da Palestina como no Afeganistão, trava-se uma luta feroz entre ricos e pobres. Luta que ainda não é um embate frontal entre classes mas que para lá caminha e terá de caminhar.
No plano das crenças e das religiões organizadas, vê-se como as massas dos fiéis são essencialmente recrutadas entre os mais pobres e entregues ao comando de hierarquias religiosas e políticas dos mais ricos. As religiões são, de facto, usadas para reforçar ou abrir caminho às novas tiranias - e as igrejas sabem que assim é. Bush, é muito religioso. Blair apela à oração. Os príncipes sauditas prostram-se no solo e adoram Alá. Os patrões afegãos do ópio e da heroína multiplicam as suas madrassas e honram o Além.
Como se vê, não estamos a criticar apenas a Igreja Católica. O que ela faz, no Ocidente, também é prática corrente nas outras religiões. Mas a Santa Sé está aqui, bem dentro das nossas portas. Merece, por isso, um destaque especial. Tanto mais que, em muitos aspectos, o Vaticano já não consegue ocultar as suas verdadeiras intenções.

A revisão de um processo

Os anais romanos registaram recentemente um curioso acontecimento.
Mal ocupou a cátedra papal, Ratzinger chegou-se à fala com um grupo integrista cuja exclusão ele próprio provocou, enquanto que Prefeito da Doutrina da Fé.
Nessa altura, dois lobbies da igreja travavam uma escaramuça politico-teológica que se conta em duas palavras.
Nos anos 80 do século XX, estalou a guerra aberta entre fundamentalistas, conservadores e progressistas católicos. Estava ainda muito presente o Concílio Vaticano II e as suas propostas revolucionárias. Os fundamentalistas organizavam-se, sobretudo, em torno da Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, liderada pelo arcebispo Marcel Lefèbvre. Declaravam ilegal a convocação do concílio que consideravam sacrílego e idólatra, exigiam o abandono imediato de qualquer forma de relacionamento com outras igrejas e o retorno da liturgia em latim. Eram um impecilho à nova imagem mediática que o Vaticano queria para a igreja e uma ameaça evidente à unidade romana. Em 1988, sob proposta de Ratzinger, João Paulo II excomungou Marcel Lefèbvre.
Os progressistas assumiam a defesa do Concílio Vaticano II. Moviam-se a partir de um feixe de igrejas descentralizadas da América Latina, representadas pelo padre Leonardo Boff e por teólogos com preocupações filosóficas, políticas, litúrgicas e sociais. Queriam uma igreja despojada de riquezas, predominantemente constituída por leigos e aberta ao mundo exterior, sem dogmas e sem rigidez hierárquica. Ratzinger e Wojtyla foram rápidos e duros nas perseguições aos padres e teólogos da Igreja da Libertação. Em 1989, já a situação estava controlada. Justamente nesse ano, o Vaticano promovia a famosa reunião da Biblioteca Vaticana onde foi decidido o desencadear da ofensiva contra os Estados Socialistas do Leste europeu. Simultaneamente, a Cúria Romana anunciou que a gestão financeira do Vaticano fora entregue a um grupo de poderosos lobbies multinacionais.
Tornou-se evidente que a dureza do Vaticano se dirigia contra o elo mais fraco, os progressistas. A situação ficou sob controlo. As massas camponesas cristãs da América do Sul voltaram ao redil. O impacto sensacional da excomunhão de Lefèbvre foi sendo esquecido. João Paulo II designou Ratzinger conselheiro espiritual da Fraternidade S. Pio X. Sem extinguir o movimento integrista. Mantendo-o vivo, como reserva estratégica.
Frio e astuto, o cardeal jesuíta tornado Bento XVI, retoma a rede de uma velha teia que ele próprio teceu. Dobram os sinos, a assinalar a morte da chamada nova igreja.


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