Já que se fala em calúnia

Correia da Fonseca
Um debate entre dois candidatos autárquicos num canal apenas acessível por cabo, embora os seus momentos mais significativos tenham sido depois divulgados repetidamente em canal aberto, acabou por ter uma aliás tristíssima repercussão à escala nacional. Foi, como se sabe, o debate entre Carmona Rodrigues e Manuel Maria Carrilho, candidatos à câmara da capital e porventura com as respectivas responsabilidades cívicas reforçadas pela circunstância de ambos terem sido ministros da República, facto que não os impediu de travarem um diálogo mal-educado coroado pela recusa de cumprimento final por parte do ex-ministro da Cultura. Foi um episódio infeliz e, pior que isso, nocivo à própria imagem pública de democracia, pois não faltou quem tenha querido utilizar o caso como mais uma prova de má qualidade dos políticos em geral e dos autarcas em particular. É sabido que anda há muito por aí uma endémica campanha contra «os políticos», contra todos os políticos sem qualquer distinção, e muito convém esgravatar nela para que entendamos o que é muito capaz de estar na sua raiz. Para essa saudável tarefa de entendimento será útil lembrar que em democracia, e pelo menos nos planos dos princípios, quem toma decisões que muito interessam ao povo em geral são os que o povo escolhe, os «políticos», e não, como acontece noutras situações, os que por força de poder financeiro ou em resultado de privilégios de nascimento se arrogam o suposto direito de mandar.
É certo que muitas, muitíssimas vezes, os que o povo escolheu são em maior ou menor grau subservientes perante os grandes detentores dos poderes ocultos mas decisivos, tanto e de tal modo que deles se tornam meros mandatários quanto ao que é determinante. Ainda assim, porém, parece natural que os dos dinheiros e correlativos meios prefiram que o apoio que os eleitos recebem das populações esteja sempre convenientemente corroído pela suspeita de que eles, «os políticos», não prestam, não merecem confiança. Essa suspeição permanente é uma forma de pressão e uma garantia de fraqueza. Assim, não será excessivamente imaginoso admitir que o empenhamento com que alguma comunicação social informa da falta de qualidade de «os políticos» muito agrada aos que, na discrição da sombra, controlam e orientam a acção dos mesmíssimos políticos.



Voltemos, porém, ao escândalo pequeno mas com repercussões que foi o debate Carmona-Carrilho e ao facto de os seus momentos mais feios terem sido repetidos pela SIC ao longo de muitos telenoticiários. Foi a coisa ao ponto de Manuel Maria Carrilho sentir que lhe era necessário vir justificar-se, e fê-lo alegando que durante o programa havia sido caluniado por Carmona, o que era de todo inadmissível e imperdoável. Se bem percebi, a calúnia em questão teria a ver com uma casa de banho e com o ministério da Cultura, mas não me sinto tentado a conhecer a questão mais de perto. Aceito, sim, que tenha havido calúnia, embora duvide de que a questão tivesse dimensão bastante para justificar a supressão do cumprimento final, ponto em que aliás Carrilho tem o direito de ser supremo juiz. Contudo, para lá de tudo isto, que me parece minúsculo e um poucochinho reles, surpreendo-me a reflectir acerca desta questão das calúnias praticadas na TV, isto é, perante o País inteiro. Lembro como, sem a menor margem para dúvidas, têm sido os comunistas, o comunismo, o PCP, alvos constantes de calúnias das mais diversas dimensões, com utilização da TV como veículo privilegiado e de superior eficácia para essa campanha permanente. Recordo como este bombardeamento intenso tem anos, décadas, e se reveste de uma tal regularidade que entrou nos hábitos nacionais sob a forma de uma espécie de normalidade monstruosa. E penso que os comunistas, embora indignando-se naturalmente, não respondem com rupturas de sinais de civismo que facilmente se confundem com défices de educação. Depois disto, continuando a reflectir, descubro por que é que os comunistas mantêm a serenidade mesmo sob a metralha de calúnias de calibre bem maior que a relacionada com supostos luxos numa casa de banho algures em Lisboa: é que os comunistas sabem que têm razão e que o uso da calúnia como arma política, por muito eficaz que possa ser em diversas circunstâncias, é sempre o recurso de quem não têm outras e melhores munições. É certo que por vezes a calúnia influencia o resultado de questões parcelares, mas ter razão é o factor decisivo no processo de longo prazo a que se chama História. Os comunistas sabem isso. É o bastante para que não dêem ao País, pela TV, o feio espectáculo de um desatino. Como, para seu mal, fez Manuel Maria Carrilho.


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