Kalinka
Este verão, passeava eu o cão numa localidade à beira-mar, no litoral alentejano, num descampado que se situa entre o mercado da localidade e um parque de campismo. Era noite, alumiada por dois holofotes nos extremos mais uma lua cheia de cor alaranjada. O sítio, portanto normalmente ermo, estava ocupado pela tenda enorme de um circo e seus acompanhares, tal como acontece todos os anos pelo mês de Agosto. Decorria o espectáculo. Cá fora, a dado momento, chegou a voz do apresentador, um pouco como a voz do sr. François do Coliseu dos Recreios nos meus tempos de criança: «E agora, da ex-União Soviética, o Zorba». Seguiu-se, de pronto a música do Kalinka que, de forma reflexa, me provocou gargalhadas que até o cão, que bem me conhece, espantou - o riso de quem, eu mesmo, quando calha também atira as suas calinadas! Ainda, mal refeito, o Kalinka, sem que tenha havido algum adicional aviso locutório, a ser continuado pelo Cancan da Belle Époque parisiense! Tudo isto - este ouvir daquela famosa peça do folclore russo, mais o aperceber-me do afastamento das realidades mostrado pelo locutor do Circo -, tudo isto a transportar-me num ápice, de volta, até Moscovo e à Universíada de 1973.
Aí, fez parte da delegação portuguesa um árbitro de basquetebol - esqueci-me do seu nome e, para o caso, também é irrelevante -, o qual, em conjunto com Orlando Azinhais, que desempenhou as funções de presidente de júri na competição de esgrima, constituíram a nossa (sub-)delegação de juízes à Universíada. Foram acomodados no Hotel Ucrânia, portanto longe dos atletas, que ficaram instalados no complexo de edifícios da Universidade Lomonossov. Pouco após a nossa chegada, o Azinhais, tendo-se desembaraçado facilmente com as indicações em cirílico, veio ter connosco ao edifício da Universidade, após atravessar parte de Moscovo de metropolitano. E dizia-nos Azinhais que o árbitro de basquetebol português mal saia do seu reduto - saía do quarto apenas para comer no restaurante do hotel, quando a fome apertava -, que estava com medo, inclusive temia que lhe fosse atribuída a arbitragem do jogo EUA-União Soviética! Tudo poderia acontecer. Um membro do governo português presente em Moscovo por altura da Universiada chegou mesmo a procurar acalmar os medos do nosso árbitro, afirmando que, se ele próprio estava à vontade ali, por maioria de razão, deveria o árbitro deixar estar naquela tensão e sentir-se descontraído.
De facto, este tipo de efeitos psicológicos estava então mais ancorado nos nossos seres do que os jovens de hoje poderão imaginar. Eu, por exemplo, lembro-me de que quando era criança, e já passado dos dois dígitos na idade em anos, com uma «visão do mundo» reforçada pelo impacto provocado pelos fazedores oficiais e oficiosos de opinião de então - incluindo através de homilias em missas - a propósito da Hungria, naqueles idos de 1956. Uma «visão do mundo» - (re-)elaborada cá dentro de mim e para mim, «ok» , bem sei - incluindo o imaginado em bem concretos termos de percepção espacial. Isto é - explico-me -, para mim o Mundo, lá para leste, terminava num muro alto até ao infinito, inultrapassável, que se encontrava para lá da cortina de ferro, uma bem alta e expugnável barreira de arame farpado. E, no estreito corredor que mediava entre a cortina de ferro e o muro, sentinelas de espingarda à bandoleira, com ar de tropa hitleriana, guardavam aquele estreitíssimo mundo comunista, marchando para trás e para diante.
Estranhas visões do mundo, é certo. Mas a verdade é hoje perdurarem em conterrâneos meus ideias e imagens bizarras acerca daquele lado mundo, como me contava o Vladimiro, um ucraniano empregado num restaurante onde já tenho ido comer. A este, um dia, ainda a trabalhar numa conhecida pastelaria do Rossio, perguntava uma colega se na Ucrânia existiam árvores e animais! Uma visão - pós-Chernobil? - já não concentracionária como aquela minha, em criança, já não temerosa de um «comunismo» percebido a desaparecer, contudo negante da espessura própria da realidade, da Vida!
Mas a verdade, também, foi o nosso árbitro de basquetebol, para além de não ter sido chamado a apitar jogos «complicados», ter começado a habituar-se às mordomias das refeições no restaurante do hotel, incluindo o saborear do caviar desconhecido e o acompanhamento musical - quem sabe se não terá ouvido e apreciado várias vezes o kalinka. Por fim, passado o susto, descontraiu-se, e a tal ponto, que até ficou com pena de abandonar aquela rica vida…
Aí, fez parte da delegação portuguesa um árbitro de basquetebol - esqueci-me do seu nome e, para o caso, também é irrelevante -, o qual, em conjunto com Orlando Azinhais, que desempenhou as funções de presidente de júri na competição de esgrima, constituíram a nossa (sub-)delegação de juízes à Universíada. Foram acomodados no Hotel Ucrânia, portanto longe dos atletas, que ficaram instalados no complexo de edifícios da Universidade Lomonossov. Pouco após a nossa chegada, o Azinhais, tendo-se desembaraçado facilmente com as indicações em cirílico, veio ter connosco ao edifício da Universidade, após atravessar parte de Moscovo de metropolitano. E dizia-nos Azinhais que o árbitro de basquetebol português mal saia do seu reduto - saía do quarto apenas para comer no restaurante do hotel, quando a fome apertava -, que estava com medo, inclusive temia que lhe fosse atribuída a arbitragem do jogo EUA-União Soviética! Tudo poderia acontecer. Um membro do governo português presente em Moscovo por altura da Universiada chegou mesmo a procurar acalmar os medos do nosso árbitro, afirmando que, se ele próprio estava à vontade ali, por maioria de razão, deveria o árbitro deixar estar naquela tensão e sentir-se descontraído.
De facto, este tipo de efeitos psicológicos estava então mais ancorado nos nossos seres do que os jovens de hoje poderão imaginar. Eu, por exemplo, lembro-me de que quando era criança, e já passado dos dois dígitos na idade em anos, com uma «visão do mundo» reforçada pelo impacto provocado pelos fazedores oficiais e oficiosos de opinião de então - incluindo através de homilias em missas - a propósito da Hungria, naqueles idos de 1956. Uma «visão do mundo» - (re-)elaborada cá dentro de mim e para mim, «ok» , bem sei - incluindo o imaginado em bem concretos termos de percepção espacial. Isto é - explico-me -, para mim o Mundo, lá para leste, terminava num muro alto até ao infinito, inultrapassável, que se encontrava para lá da cortina de ferro, uma bem alta e expugnável barreira de arame farpado. E, no estreito corredor que mediava entre a cortina de ferro e o muro, sentinelas de espingarda à bandoleira, com ar de tropa hitleriana, guardavam aquele estreitíssimo mundo comunista, marchando para trás e para diante.
Estranhas visões do mundo, é certo. Mas a verdade é hoje perdurarem em conterrâneos meus ideias e imagens bizarras acerca daquele lado mundo, como me contava o Vladimiro, um ucraniano empregado num restaurante onde já tenho ido comer. A este, um dia, ainda a trabalhar numa conhecida pastelaria do Rossio, perguntava uma colega se na Ucrânia existiam árvores e animais! Uma visão - pós-Chernobil? - já não concentracionária como aquela minha, em criança, já não temerosa de um «comunismo» percebido a desaparecer, contudo negante da espessura própria da realidade, da Vida!
Mas a verdade, também, foi o nosso árbitro de basquetebol, para além de não ter sido chamado a apitar jogos «complicados», ter começado a habituar-se às mordomias das refeições no restaurante do hotel, incluindo o saborear do caviar desconhecido e o acompanhamento musical - quem sabe se não terá ouvido e apreciado várias vezes o kalinka. Por fim, passado o susto, descontraiu-se, e a tal ponto, que até ficou com pena de abandonar aquela rica vida…