Políticas religiosas e religiões políticas

Jorge Messias
Por poderosos que sejam os Estados, as guerras que desencadeiam acabam sempre por arruinar os seus sistemas económicos. É só questão de tempo. Por isso, o império americano já sente o gosto amargo dessa angústia. Quanto a Israel, com uma catástrofe económica à vista, decidiu inesperadamente mudar de estratégia político-militar. Deste modo, retira da estreita faixa de Gaza, diminui os gastos com a ocupação e beneficia a sua imagem junto da sempre poderosa opinião pública. Porém, a sua política expansionista, de base religiosa, permanecerá intacta. A decisão da retirada não irá enfraquecer o seu dispositivo bélico. Entre Israel e a Palestina, ergue-se uma extensa muralha dotada de alta tecnologia de guerra. Retalhada entre colonatos estratégicos e postos de controlo, a Cisjordânia impede o exercício efectivo de qualquer administração palestiniana. E a formosa faixa de Gaza, teoricamente desmilitarizada, oferecerá todas as condições para se transformar num luxuoso paraíso turístico.
À primeira vista, esta repentina «cambalhota» de Ariel Sharon parece apenas oferecer vantagens ao Estado sionista. Mas nem tudo são rosas em Israel. Vista de outro ângulo, percebe-se que a nova estratégia contém sementes de tremendas cisões políticas e religiosas. Nem todos os judeus são praticantes, nem todos estão de acordo quanto à guerra, nem todos aceitam a tese da «Terra Prometida». Mas em todo o cidadão israelita permanece a marca cultural de um povo antigo que acredita ser a sua religião o elemento unificador de Israel, como Nação.
Aí reside um erro de cálculo de Ariel Sharon.

A retaguarda de Israel

O fundamentalismo dos «povos separados», portadores de uma missão divina, dificilmente se apartará do pensamento colectivo dos judeus, onde quer que se encontrem. Sendo nação, não possuíram durante séculos uma pátria própria e um território seu. Ao longo dos tempos, foram perseguidos, torturados, expulsos, convertidos à força a outras religiões, obrigados a exibir sinais distintivos, saqueados dos seus haveres, descritos como seres inferiores, diabolizados, culpados por todos os crimes e pecados. Durante séculos, o seu refúgio foi a religião, o silêncio, o instinto da sobrevivência. Cada judeu do presente herdou estes genes ancestrais.
A nova estratégia adoptada por Telavive esquece a natureza do povo que diz representar. A elite dirigente de Israel, como qualquer outra elite, pouca importância confere ao povo comum. É capitalista, globalizante e neo-liberal. Por isso, quando a crise aperta, comete em casa própria erros de palmatória, talvez já fruto do desespero. A retirada de Gaza pode vir a resultar numa autêntica crise de consciência dos milhões dos judeus que, em todo o mundo, acreditam na verdade integral dos textos bíblicos. Ouçamos, então, o Antigo Testamento.
«Nas planícies de Moabe, junto ao Jordão, disse o Senhor a Moisés :
- Ordena aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando tiverdes passado o Jordão e entrado na terra de Canaã, exterminai todos os habitantes daquele país. Quebrai os padrões, reduzi a pó as estátuas e devastai todos os seus lugares altos, purificando a terra e habitando nela, porque eu vo-la dei em possessão. E a repartireis entre vós, por sortes: aos que forem em maior número, dareis uma porção maior e aos que forem menos, uma porção mais pequena. Cada um receberá a sua herança, conforme o que lhe cair por sorte. A divisão será feita por tribos e famílias. Mas se vós não quiserdes matar os habitantes do país, os que ficarem serão para vós como pregos nos olhos e lanças nas ilhargas, e opor-se-vos-ão na terra da vossa habitação. E, então, todo o mal que eu tinha pensado fazer-lhes a eles, o farei a vós
» (Livro de Números, cap. 33, vers. 50/56).
Como gentios que somos, ocidentais e laicos, este trovejante Jeová pouco nos impressionaria. Não é assim para a grande maioria do povo judaico. A Palestina é a terra que mana leite e mel, a terra prometida aos hebreus. Os palestinos, o rival histórico que Deus manda exterminar. A justa partilha do território (os colonatos), são um direito directamente conferido por Deus. Tudo, tal como estava a acontecer, tinha sido previsto pelos profetas de há dois mil anos.
De súbito, um renegado inverte o curso da História: judeu, expulsa judeus, prende-os em jaulas, invade sinagogas, desrespeita os rabis. Esquece que os hebreus também sabem punir os seus. A frio, se for preciso. Sem perdão, segundo a Lei: olho por olho, dente por dente. Que estão em toda a parte, desde a alta finança às bolsas de pobreza dos países ricos. E que a obediência à Tora se sobrepõe aos interesses dos políticos israelitas.
Veremos o que vai acontecer!


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