Tecnologias ou o equívoco

Correia da Fonseca
É uma verificação praticamente consensual: os quatro canais clássicos a que a generalidade dos portugueses tem acesso estão a fornecer programações desinteressantes, repetitivas e, pelo menos em dois deles, a tenderem crescentemente para o reles, na aparente convicção, que aliás não está errada, de que o reles «vende» bem em terra onde as gentes nunca foram acostumadas a coisa melhor. É neste quadro, especialmente decepcionante para os que um dia sonharam que a TV havia de servir para outras coisas, que volta a falar-se, e agora com mais consistência e horizonte temporal à vista, na «televisão de alta definição». A julgar pelo que se anuncia e parafraseando um pouco um irónico poema de Manuel Bandeira que se não é muito conhecido devia sê-lo (e, se não o é, a culpa é mais uma vez da televisão que nos impuseram), a TV de alta definição «é outra civilização». Calcule-se que, com ela, a qualidade da imagem será cinco vezes melhor! Imagine-se, por exemplo, o que será em alta definição a imagem de um José Castelo-Branco ou mesmo certas sequências de um programa como «Fiel ou Infiel?». Mas quem cita estes altos paradigmas poderia citar, com mais modéstia, qualquer das novelas da TVI ou mesmo o «Às Duas por Três» que há séculos ou pouco menos preenche as tardes da SIC nos cinco dias úteis da semana. Assim, e como bem se compreenderá, a expectativa do sem dúvida grande melhoramento tecnológico que será a alta definição insufla algum optimismo a quem porventura se sinta desencantado com o estado actual da TV. E, inevitavelmente, insinua-se deste modo não apenas a resignação, em nome do adiamento de esperanças que entretanto se frustraram, mas também a desvalorização de eventuais críticas ao que «está», pois o que passa a importar é o entusiasmo possível e provável perante o que amanhã «estará».

Abrunhosa na última linha

Por agora, só um escassamente conhecido operador da TV por cabo, a Cabovisão, fornece esta nova televisão mediante a assinatura do canal HD1, e é naturalmente uma voz representativa desse canal que disse a uma pequenina revista da especialidade, suplemento do «Correio da Manhã», que «a passagem para alta definição é algo comparável à evolução do preto-e-branco para a cor». Parece-me que a analogia se justifica, ainda que talvez apenas grosso modo. A questão mais importante, contudo, situa-se noutro lado, e é quanto a isso que convém não deixar passar em claro o que pode começar por ser um equívoco e pode acabar em embuste intelectual ou, quem sabe?, vice-versa. O advento da TV de alta definição, já hoje ou amanhã cedinho, tal como a chegada da televisão a cores há cerca de trinta anos, esse sem dúvida muito mais evidente e marcante, é um progresso formal que decerto possibilita outros e mais importantes conteúdos mas não os garante. Está aí a TV Memória que lembra aos que lhe têm acesso ter havido programas a preto-e-branco, para mais produzidos sob um regime de ditadura reaccionaríssima e criminosa, que contudo nos fazem saudade e inveja porque bem vemos como seria bom que os pudéssemos ter hoje. O fenómeno, aparentemente estranho, tem explicação, como tudo: é que naqueles anos era impensável, pelo menos em toda a Europa (os Estados Unidos já então trilhavam outro caminho, embora sem o impudor que depois passou a ser regra), que a TV não tivesse uma importante vertente de acção cultural e culturalizante. Porque era assim, nem a TV de Salazar e Marcelo se atrevia a ser diametralmente diferente, nem de resto então o império de mediocridade superavacalhada fizera ainda impor a sua lei. Agora, como tristemente se sabe, a TV em lindas cores é uma desolação para quem tenha um mínimo de exigência e, como regra, os programas com qualidade cobram uma espécie de tributo: quem queira vê-los deve pagar o privilégio com horas de vigília em tempo de sono.
A moral da estória está à vista e nem seria preciso explicitá-la: a mudança do preto-e-branco para a cor, tal como previsivelmente da actual TV analógica para a de alta definição, é um progresso tecnológico, formal, que só por equívoco pode ser tomado como implícita promessa de melhoria dos conteúdos. E isto tem uma consequência de primeiríssima importância: não nos deixemos enganar por expectativas que de facto a mudança anunciada não comporta; defendamo-nos mesmo contra a probabilidade desse engano estar a ser favorecido e induzido por quem nele veja vantagem. Usando uma imagem há alguns anos cantada por Abrunhosa: não queiramos confundir o corpo com a alma.


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