Visita dos Céus à Terra ...

Jorge Messias
As notícias são alarmantes. Há guerras e rumores de guerras, intrigas, calúnias, difamações e uma febril actividade da contra-informação. O mundo atola-se na miséria e numa nunca imaginável dimensão das fortunas. De forma programada, gradual, instalam-se na terra o inferno e o paraíso. Esta leitura moralizante normalmente fica-se por aqui. Mas é assunto que interessa. É preciso entendê-lo melhor.
Há duas linhas de força nas sociedades de consumo cuja realidade temos de reconhecer, quer gostemos ou não: os ricos roubam os pobres, enquanto os mais ricos vão esmagando os menos ricos; sendo esta verdade pouco simpática às classes ricas, construiu-se em torno da riqueza uma verdadeira mitologia e a utopia do sucesso. Esta nova religião vai beber o seu discurso às velhas fontes da teologia. Os grandes centros comerciais são catedrais, a suma sabedoria é a organização empresarial de mercado, o marketing a sua liturgia, e o milénio simboliza a vitória da ambição pessoal e do lucro. O paraíso será alcançado quando a humanidade começar a viver a glória do Reino inscrita na globalização dos mercados. É esta a imagem virtual que o capitalismo procura projectar de um Éden futuro, em fase de construção.
Por força das coisas, porém, o mesmo capitalismo cultiva todos os componentes diabólicos como factores essenciais à formação do grande capital: a violência, a corrupção, o jogo, o vício, o saque, o egoísmo, etc., etc. Deve mentir-se, sob condição de saber ocultar-se a mentira. Deve roubar-se, se o ladrão souber ocultar o roubo. Deve matar-se, desde que o crime fique ignorado ou para ele se encontre uma aparente justificação ética.

O modelo da mente saqueada

Embora não o admita, o capitalismo limita-se a repetir uma prática secular. Fez guerra ao mouro, ao turco, ao mongol, ao judeu, ao africano, saqueou-lhes as riquezas e medrou à sombra dos roubos colossais que praticou. Tentou, então, encobrir a sua ganância chamando-lhe cruzada, expansão da fé, reconquista cristã ou reeducação dos heréticos. Eram outros os tempos e poucos os meios de comunicação. O grande comunicador do capital eram as igrejas, os padres e os frades, os pregadores, a religião. O Vaticano e o capitalismo tornaram-se irmãos gémeos. Embora com tarefas distintas. O capitalismo explorava a força do trabalho. A Igreja denunciava os crimes cometidos mas encontrava, sempre, formas para os justificar e para perdoá-los. A unidade da Europa alimentava-se dos medos colectivos ao mouro, ao turco, ao mongol, ao judeu ou ao africano, os mesmos que o capitalismo ia guerreando. Os vassalos temiam os seus senhores, as incursões dos infiéis, as penas do purgatório, a excomunhão que equivalia à morte, a escravidão, as fomes e as pestes. O povo vivia num clima de permanente terror. Os humildes nem ousavam pensar.
É certo que, na lenta passagem dos séculos, os sinais aparentes destes quadros se foram alterando. Passo a passo, viveu-se a Renascença, a Reforma, os Descobrimentos, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, a Revolução de Outubro. A sociedade registou, em muitas áreas, alterações profundas. No entanto, vendo melhor, reconhece-se que muito do essencial permaneceu como estava. Com diferenças de pormenor, a guerra continuou a ser a guerra, a repressão especializou-se, acentuou-se o imperialismo e cresceu o peso económico e a influência política da propriedade privada dos meios de produção. Gradualmente, as grandes conquistas humanas foram sendo reabsorvidas pelo capital. A Revolução Francesa foi socialmente esmagada, as grandes conquistas científicas colocaram-se ao serviço dos principais interesses financeiros, o Estado soviético não soube derrotar os ardis do tempo e as manhas do inimigo. Com o fim (ou a suspensão) da «guerra fria» desvaneceram-se os equilíbrios precários que ela permitira.
Tinha-se entrado num novo ciclo. A Igreja cantou vitória mas os capitalistas cedo se aperceberam dos perigos que se aproximavam. Não era possível recorrer exclusivamente à guerra como motor da economia. A guerra moderna não podia ser apenas de rapina. Para se expandirem, os mercados tinham de criar camadas compradoras. Mas o panorama era negativo. A crise do capitalismo não cessava de se agravar, submersa pelo excesso de produção e pelos preços do petróleo. O Vaticano deixara-se enredar pela burocracia, pelas intrigas internas e pelos fundamentalismos. Era preciso renovar as estratégias.
Foi esta a oportunidade por que tanto aspiravam os tecnocratas. Repuseram o princípio de que os seres humanos são basicamente gregários e religiosos. Redigiram novos mitos e ressuscitaram, com o terrorismo sem rosto, os medos ancestrais.
É este o ponto onde estamos.


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