Os cativos de Camões

Isabel Araújo Branco
«Cativo sou de cativa, / servo d’ũa servidor, / senhora de seu senhor.» É com estes versos que D. João de Meneses inicia um «Vilancete a ũa escrava sua», incluído no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, publicado em 1516. Anos mais tarde, Luís de Camões escreve «Aquela cativa…», composição com o mesmo tema do poema da compilação. Nela, o sujeito poético mostra-se profundamente apaixonado pela sua escrava Bárbara, sentindo-se servidor da sua servidora: «Esta é a cativa / que me tem cativo».
Bárbara não é bárbara, não só pela beleza física, como também pela sua personalidade e postura. Mais bonita que as flores dos campos e as estrelas do céu, os seus olhos, o seu rosto e o seu cabelo são destacados como tendo uma perfeição ímpar. Vão contra as convenções sociais de belo, mas não deixam por isso de superar o que é comummente admirado. O preto do cabelo ultrapassa a beleza do típico louro europeu. A cor dos olhos condiz, mostrando-se contudo cansados «mas não de matar». Nesta oração adversativa é evidente uma crítica aos colonizadores portugueses do século XVI, colocando-os em oposição à mulher amada, natural de alguma de alguma região do império, possivelmente da Índia, a julgar pela dedicatória que encima o poema. A cor da pele, igualmente distinta da brancura da tez europeia, é também enaltecida. «Pretidão de Amor», tão bela que a neve promete mudar de tom para se parecer mais com ela.
Se os olhos são «sossegados», a «doce» figura de Bárbara manifesta uma «leda mansidão / que o siso acompanha», numa «presença serena» que tem o poder de amansar «a tormenta». Nela o sujeito encontra paz para a sua «pena», nela descansa, nela vive e retempera forças. Ela é o seu refúgio e salvação, a sua verdadeira pátria, longe da terra onde nasceu, e, se não maternal, pelo menos «doce», feita de «uma graça viva». Classificada como «estranha», ou seja, excepcional, a escrava abandona a posição tradicional de inferioridade graças à paixão do seu amo e alcança um lugar superior a este, cativo da sua cativa.
Nesta redondilha, o amor é afirmado sem qualquer tipo de preconceito, livre e elogiador, rendido à beleza e ao carácter da amada. «Nela vivo», declara o sujeito. O leitor não consegue duvidar desta sinceridade, incontestável que é a rendição masculina. Não há, no entanto, nenhuma referência à correspondência do amor de Bárbara. Sabemos apenas que «amansa» a «pena» do sujeito. Mas será que a cativa está tão apaixonada como o seu amo?

E Bárbara?

Encontramos aqui dois universos que se cruzam: o das agitações pessoais (neste caso será causado pela guerra, por preocupações com a subsistência, por questões filosóficas?) e o do amor como abrigo e redenção para toda a dor, incerteza, angústia e desespero. Haverá outros campos no poema: o do colonialismo europeu, o da escravidão, o da relação entre senhor e servidor, entre homem e mulher.
Será apenas uma relação de amor disfarçada por uma condição servil? Dono e escrava trocam de papel no poema: o senhor é o cativo da sua escrava, porque está por ela apaixonada. E ela? Encontramos a tal indefinição. Mas porquê? Porque o poema apenas aborda legitimamente a perspectiva dele, como nas medievais cantigas de amor? Ou será que é a própria condição de escravidão dela que condiciona esta leitura parcial e apaga a sua voz por ser a de uma escrava? Será que é exactamente por ser uma escrava que tem de suportar todas as paixões do seu senhor sem importar a opinião que tem sobre isso? Estamos a ser maus e arrogantemente feministas?
A questão, de facto, coloca-se, mas talvez possamos encontrar uma resposta (uma, porque na literatura nunca há uma resposta única...) no conceito de cantigas de amor, desenvolvido na Península Ibérica durante a Idade Média. Nestas composições, o poeta tem de respeitar um código que o obriga a elogiar a senhora amada em termos abstractos. O mais concreto que dizem é que ela é bonita, tem mesura, é preçada e fala bem. Tudo porque uma outra regra a respeitar é o segredo da identidade delas, muitas vezes casadas. Nas cantigas de amor, o apaixonado ocupa uma posição inferior, como um vassalo e um servidor. Os poetas pedem continuamente o «bem» da «senhor» – um eufemismo para sexo –, por isso sofrem de «coita» e lamentam-se. Poucas são as referências às verdadeiras reacções das mulheres, pois, embora manifestem desprezo e indiferência, a sua condição de casadas não lhes permite muito mais do que isso.
Camões, em «Aquela cativa...», não precisa de fugir à descrição física de Bárbara. Pelo contrário, grande parte do poema assenta nisso. Contudo, a ideia do homem como servidor de um ser superior mantém-se. Será que a ausência de referência aos sentimentos dela têm igualmente um fundamento semelhante ao das composições medievais?


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