Hoje dá-se música

Correia da Fonseca
Parece incontornável, palavra esta que além do mais tem o mérito de estar muito na moda, que o grande tema televisivo dos últimos dias foi o chamado Caso da Pedofilia que, pelos vistos,. ameaça deixar de ser o Caso da Casa Pia para cobrir mais vastas parcelas do território nacional. Sendo assim, a abordagem desse tema e do modo como a TV o vem tratando surge como assunto obrigatório para quem tenha tomado por tarefa comentar melhor ou pior o que a televisão traz à casa de cada um de nós. Acontece, porém, que as coisas não são simples. Basta dizer que, para muitos cidadãos, no imaginário banco dos réus que os media instalam no espírito de cada qual não estão apenas sentados os que a PJ foi um dia buscara diferentes lugares e um juiz decidiu reter em prisão preventiva: agora, também está sentada no tal banco dos réus, que não será de mais repetir que é apenas imaginário, a própria Justiça do nosso país. Ora, escusado será dizer que essa circunstância obviamente grave torna tudo mais difícil. Até porque o território da Justiça tem uma extensa fronteira com o território da Política, bastante para disso nos apercebermos saber que a justiça tem, no Governo, um Ministério com um titular, que por acaso nesta circunstância é uma titular, que a aliás excelente Polícia Judiciária tem uma direcção que não surge ali por geração espontânea; que os senhores Juízes, por muito autónomos que sejam, não têm outro remédio senão trabalhar com as leis que há, produzidas pelos órgãos eminentemente políticos que são o Governo e a Assembleia da República, promulgadas por esse outro órgão político que é o Presidente da República. Dito isto, não será preciso acrescentar mais nada para entendermos que falar hoje de pedofilias e seus anexos implica, de facto, falar de Política, acontecendo que não estou para aí voltado pelo menos por dois motivos. Um deles, de carácter estritamente pessoal ou quase, é que não sou homem para me meter em políticas, sobretudo quando por uma ou outra razão isso seja desaconselhável. 0 outro motivo é que, ao que tudo indica, isso da pedofilia não é assunto que diga respeito aos comunistas: graças aos bons ofícios da mais castiça propaganda anticomunista, é sabido que os comunistas não podem abusar sexualmente dos menores pela definitiva razão de que os devoram enquanto criancinhas. Recordá-lo agora, com inquestionável oportunidade, é quanto basta para que abandonemos este assunto que, aliás, já se alongou excessivamente.

Um vago aroma de origem

É preciso, pois, encontrar outro tema, e tema com oportunidade temporal, para esta coluna. Por feliz circunstância, a Eurovisão e a RU forneceram-no com a realização no passado sábado de mais um Eurofestival da Canção. Como é sabido, o Eurofestival é um quinquagenário que muito cedo foi atingido por dois males, qual deles o mais grave: um elevado nível de esclerose e a absorção de influências anglo-americanas em overdoses letais para a condição europeia das cantiguinhas que deviam representar as diferentes pátrias concorrentes. Esta grave enfermidade é facilmente detectável perante o facto de enorme parte dos concorrentes cantarem não na sua língua pátria mas sim no que parece ser inglês mas não é, é "americano". Mas também as partituras têm, quase como regra geral, menos vestígios do lugar de origem que dos sons, irnpotos ao mundo pelas grandes multinacionais anglo-saxónicas. Ora, este ano aconteceu que a nação vencedora do Eurofestival foi a Turquia, que da Europa só tem uma nesguinha de território e do outrora chamado "espírito europeu" nem sequer ainda adoptou o. respeito pelos direitos humanos mais falados, sem falar dos outros, o que está supostamente a suscitar embaraços para a sua entrada na UE. De qualquer modo, a Turquia ainda não será suficientemente europeia para passar por democrata mas já serve para ganhar o Eurofestival - tudo bem, já disse que hoje não quero meter-me em políticas. Quero, porém, acrescentar que a canção turca venceu e venceu muito bem, até pela sugestão de caracterização turca que dela se desprendia pela música, pela coreografia e, a julgar pelo que foi dito pela locução portuguesa, também pelo texto da canção ainda que cantado em "inglês". É certo que outras canções foram cantadas na língua de origem e com sons a lembrarem o país que representavam: a espanhola, a russa, mais algumas. Mas a vitória da canção turca pode ter servido para lembrar um pouco que aquilo não é um festival de cantigas anglo-saxónicas. Ninguém terá levado isso em conta, mas o mérito de um mínimo de ingenuidade parece-me inegável.


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