Tragédias de guerra

Correia da Fonseca
Agora, perante os atentados de Londres, antes deles e frequentemente por ocasião dos atentados, suicidas ou não, cometidos no Iraque e em Israel, lembro-me de uma frase de John Le Carré, o escritor britânico e ex-agente do MI5, que li no seu romance mais recentemente editado entre nós: «terrorista é um homem que tem a bomba mas não tem o bombardeiro». Tenho como certo que estas palavras repõem no terreno da verdade e da lucidez, terreno aliás muito pouco frequentado sobretudo a avaliar pelo que vejo e ouço na televisão, uma das vertentes mais trágicas da realidade actual. A questão, cujo reconhecimento não envolve nenhum juízo de valor e menos ainda a atribuição de mérito aos processos escolhidos, é que, parece-me, aquilo a que na TV ouço chamar «terrorismo internacional» corresponde de facto a uma guerra que está em curso e que não se desenrola nos moldes a que estávamos habituados. Sabemos ter havido um tempo, lá para os anos 14-18 do século passado, em que a guerra era protagonizada por dois exércitos que se defrontavam enterrados em trincheiras de onde só excepcionalmente saíam. Sabemos também que uns anos depois, mas no mesmo século, a guerra implicava quase sempre a utilização de um enorme número de blindados e, nos ares, a acção de milhares de aviões, as forças militares inimigas estando ainda nitidamente delimitadas no território. Hoje, apesar de ainda haver substanciais resquícios desta segunda maneira, a tendência é outra, aliás imposta pelo enormíssimo desequilíbrio das forças inimigas em matéria de equipamentos bélicos digamos que clássicos. E é neste quadro actual que ganha poder esclarecedor a frase corajosa de Le Carré, tão insuspeito de simpatias pelo tal chamado «terrorismo internacional», contra o qual aliás actuou e escreveu. Já agora, talvez possamos tirar algum proveito reflectindo sobre a semelhança das duas designações muito usadas pelos mesmos ou homólogos meios: «comunismo» e «terrorismo», com a mesma adjectivação. Todos ou quase todos nós já arrecadámos experiência bastante para sabermos que «não há coincidências», para citar aqui, já agora e em estreia absoluta neste jornal, creio, a escritora light Margarida Rebelo Pinto através do título de uma das suas obras.

Erradicar o vírus

Temos identificado, pois, graças a John Le Carré, o dado fundamentalíssimo da grande questão do tempo actual que se vem revelando sobretudo através de terríveis tragédias que nos deixam consternados: isto é uma guerra, uma guerra de tipo diferente mas guerra, e guerra que, como as precedentes, também implica repugnantes massacres de civis inocentes – e, acrescente-se, não apenas de um dos lados da contenda em curso. Ora, acontece que o que vemos e ouvimos na TV não nos ajuda nada a entender a verdadeira natureza do que está a acontecer. Vêm os grandes e poderosos líderes do Ocidente, os Bush, os Blair e seus acólitos menores, garantirem-nos que defenderão com êxito a Civilização Ocidental ameaçada (os mais velhos talvez se lembrem de ouvir isto mesmo em outras bocas nos idos da década de 40 do século XX, o que é pelo menos desagradável). Mas não nos falam propriamente em atacar o inimigo, pelo aliás intransponível motivo de que não sabem onde ele está, e entretêm-se por isso a atacar-nos a nós, cidadãos, amputando-nos segmentos de liberdades e direitos que muito custaram a obter. De guerra não falam, até porque isso poderia constituir motivo para que alguém partisse a investigar quem a teria começado, mas guerra é. E acontece que as guerras são como tudo neste mundo e designadamente um pouco como as doenças: têm causas. Digamos que as guerras são provocadas por uma espécie de vírus, e contra os vírus, e contra os vírus é escasso trancar portas e janelas, não deixar que os meninos saíam para a rua e adoptar providências de algum modo semelhantes a estas: é preciso identificar o vírus, isolá-lo, irradicá-lo. O que é como quem diz: é preciso identificar as causas desta guerra terrível que surge na TV e fora dela sob a designação de «terrorismo internacional», isolá-las e acabar com elas. Sabem-no e dizem-no os comunistas, mas não apenas eles, como até se percebe vendo e ouvindo a televisão. Mas quem o sabe e o diz arrisca-se a transformar-se em alvo de hostilidades e calúnias. E a TV parece não querer dar ouvidos a essa sabedoria fundamental. Não por se parecer com a mulher séria, a que não tem ouvidos. Mas pelo motivo exactamente contrário.


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