As andanças de um referendo
É característica actual da vida pública portuguesa a confusão e as trapalhadas que se tecem em torno dos mais graves problemas reais. Grande parte dos partidos políticos e das instituições do Poder provocam o debate só para confundirem e esconderem as realidades com os mantos diáfanos da retórica. Nesta deliberada linha de orientação do Poder, a questão bem real da interrupção voluntária da gravidez continua a suscitar tomadas de posição vincadamente demagógicas, baseadas em cerrados sistemas de contravalores.
Nunca, como agora, a falta de transparência do debate terá atingido tão escandalosas proporções. Há referendo, não há referendo? Tem ou não tem, a Assembleia da República, legitimidade para modificar a lei e decidir-se pela despenalização? Devem as decisões parlamentares obedecer a critérios do respeito pelas leis da República ou à obediência ao dogma e à doutrina da igreja? O problema é social e político ou simplesmente teológico?
Por entre todo este enredo, o tempo passa. As mulheres portuguesas continuam a contar apenas com a benevolência com que os juizes possam interpretar, nos tribunais, a lei repressiva em vigor. Não é a República que garante a sua liberdade de cidadãs. Nem é a igreja que corre a defendê-las. Dependem, simplesmente, do sentido humanitário de quem as julga em tribunal.
Não se deve procurar ocultar que cabem ao Partido Socialista as grandes culpas desta situação antidemocrática e desumana. Defendeu a realização de novo referendo e logo a seguir recuou. Proclamou a completa independência das suas posições e refugiou-se, depois, na necessidade da obtenção de consensos. Fez sucessivas cedências nos prazos inicialmente propostos para a despenalização. Declarou, então, que a Assembleia da República não precisa de referendo para alterar a lei. Em seguida, vetou as propostas de alteração que outros partidos apresentaram nesse sentido. O seu grupo parlamentar usa a IVG como forma de pressão política, sobretudo em questões eleitorais que nada têm a ver com este escandaloso problema social, como é o caso da tentativa de utilização da despenalização do aborto como moeda de troca para as próximas eleições presidenciais.
A hierarquia da igreja católica representa outro forte travão ao avanço da construção de uma sociedade mais justa e da emancipação da mulher, objectivos com os quais, no entanto, socialistas e episcopado dizem concordar. Nesta reflexão não podemos, aliás, esquecer que no interior do grupo parlamentar do PS funciona uma forte estrutura de «católicos independentes» com raízes profundas na igreja e no CDS. Como é inevitável, essa formação transporta, para dentro do PS, uma obediência estranha a qualquer noção de socialismo. Quando surgem situações escandalosas, como esta da despenalização do IVG, os efeitos desses compromissos «anti-natura» devem ser insistentemente denunciados. Sobretudo quando os direitos básicos da mulher são tão vergonhosamente espezinhados.
Detalhe revelador
Que o Vaticano é contra todas as formas de contracepção e indiferente aos desenvolvimentos da moral laica, já todos o sabem. Que os bispos portugueses e o Patriarcado obedecem cegamente ao papa, não é novidade para ninguém. Mas ao menos, no caso do IVG, há coerência entre a teoria e a prática da hierarquia da igreja. Os socialistas nem essa lógica podem invocar.
Há poucos dias, ainda mais se adensou a névoa que se abate, nesta matéria, sobre as razões invocadas pelo governo do PS. O ministro da Saúde, Correia de Campos, veio declarar publicamente que o seu ministério tinha decidido atribuir ao sector privado a possibilidade da prática de abortos «legais», isto é, de actos de interrupção voluntária da gravidez nos quadros da lei em vigor. O encaminhamento para o privado será feito pelo Serviço Nacional de Saúde que pagará as intervenções clínicas segundo as tabelas das instituições privadas. Acrescentou o ministro, na sua informação, que existem nos hospitais civis graves dificuldades na realização dos abortos legais as quais «radicam provavelmente na objecção de consciência por parte dos profissionais dos estabelecimentos públicos», (tentativa de aproximação ao argumentário dos patrões e da igreja . Mas que curioso raciocínio, este! Traduz a noção de que a deontologia dos médicos e dos enfermeiros portugueses é diferente segundo a natureza das instituições que os empregam, públicas ou privadas ... O «esclarecimento» do ministro contém, no entanto, um detalhe revelador. Passou o tempo dos mitos. Não se trata já de saber se a questão é social, científica ou de ética religiosa. O essencial é considerá-la como uma potencial «fatia de mercado». E não é de excluir que, quando o Serviço Nacional de Saúde for extinto e o negócio passar para os Melos, os Espírito Santo ou os Champalimaud, o PS e os seus «objectores de consciência» se tornem ferozes defensores da liberalização do aborto.
Quanto às mulheres - exploradas, humilhadas e ofendidas - essas figuram em toda esta história como ratinhas de laboratório...
Nunca, como agora, a falta de transparência do debate terá atingido tão escandalosas proporções. Há referendo, não há referendo? Tem ou não tem, a Assembleia da República, legitimidade para modificar a lei e decidir-se pela despenalização? Devem as decisões parlamentares obedecer a critérios do respeito pelas leis da República ou à obediência ao dogma e à doutrina da igreja? O problema é social e político ou simplesmente teológico?
Por entre todo este enredo, o tempo passa. As mulheres portuguesas continuam a contar apenas com a benevolência com que os juizes possam interpretar, nos tribunais, a lei repressiva em vigor. Não é a República que garante a sua liberdade de cidadãs. Nem é a igreja que corre a defendê-las. Dependem, simplesmente, do sentido humanitário de quem as julga em tribunal.
Não se deve procurar ocultar que cabem ao Partido Socialista as grandes culpas desta situação antidemocrática e desumana. Defendeu a realização de novo referendo e logo a seguir recuou. Proclamou a completa independência das suas posições e refugiou-se, depois, na necessidade da obtenção de consensos. Fez sucessivas cedências nos prazos inicialmente propostos para a despenalização. Declarou, então, que a Assembleia da República não precisa de referendo para alterar a lei. Em seguida, vetou as propostas de alteração que outros partidos apresentaram nesse sentido. O seu grupo parlamentar usa a IVG como forma de pressão política, sobretudo em questões eleitorais que nada têm a ver com este escandaloso problema social, como é o caso da tentativa de utilização da despenalização do aborto como moeda de troca para as próximas eleições presidenciais.
A hierarquia da igreja católica representa outro forte travão ao avanço da construção de uma sociedade mais justa e da emancipação da mulher, objectivos com os quais, no entanto, socialistas e episcopado dizem concordar. Nesta reflexão não podemos, aliás, esquecer que no interior do grupo parlamentar do PS funciona uma forte estrutura de «católicos independentes» com raízes profundas na igreja e no CDS. Como é inevitável, essa formação transporta, para dentro do PS, uma obediência estranha a qualquer noção de socialismo. Quando surgem situações escandalosas, como esta da despenalização do IVG, os efeitos desses compromissos «anti-natura» devem ser insistentemente denunciados. Sobretudo quando os direitos básicos da mulher são tão vergonhosamente espezinhados.
Detalhe revelador
Que o Vaticano é contra todas as formas de contracepção e indiferente aos desenvolvimentos da moral laica, já todos o sabem. Que os bispos portugueses e o Patriarcado obedecem cegamente ao papa, não é novidade para ninguém. Mas ao menos, no caso do IVG, há coerência entre a teoria e a prática da hierarquia da igreja. Os socialistas nem essa lógica podem invocar.
Há poucos dias, ainda mais se adensou a névoa que se abate, nesta matéria, sobre as razões invocadas pelo governo do PS. O ministro da Saúde, Correia de Campos, veio declarar publicamente que o seu ministério tinha decidido atribuir ao sector privado a possibilidade da prática de abortos «legais», isto é, de actos de interrupção voluntária da gravidez nos quadros da lei em vigor. O encaminhamento para o privado será feito pelo Serviço Nacional de Saúde que pagará as intervenções clínicas segundo as tabelas das instituições privadas. Acrescentou o ministro, na sua informação, que existem nos hospitais civis graves dificuldades na realização dos abortos legais as quais «radicam provavelmente na objecção de consciência por parte dos profissionais dos estabelecimentos públicos», (tentativa de aproximação ao argumentário dos patrões e da igreja . Mas que curioso raciocínio, este! Traduz a noção de que a deontologia dos médicos e dos enfermeiros portugueses é diferente segundo a natureza das instituições que os empregam, públicas ou privadas ... O «esclarecimento» do ministro contém, no entanto, um detalhe revelador. Passou o tempo dos mitos. Não se trata já de saber se a questão é social, científica ou de ética religiosa. O essencial é considerá-la como uma potencial «fatia de mercado». E não é de excluir que, quando o Serviço Nacional de Saúde for extinto e o negócio passar para os Melos, os Espírito Santo ou os Champalimaud, o PS e os seus «objectores de consciência» se tornem ferozes defensores da liberalização do aborto.
Quanto às mulheres - exploradas, humilhadas e ofendidas - essas figuram em toda esta história como ratinhas de laboratório...