Um programa cheio de pressa
As reportagens do funeral de Álvaro Cunhal foram, sem margem para dúvida, o grande tempo de TV havido na passada semana, e a vários títulos. Essa seria, só por si, razão bastante para que esta dupla coluna fosse hoje exclusivamente dedicada a esse acontecimento, porventura desdobrando-se a abordagem em duas áreas: na avaliação da cobertura directa do cortejo e das horas que o antecederam, por um lado, e em eventuais comentários ao que acerca de Álvaro Cunhal foi sendo dito na tranquilidade dos estúdios enquanto o funeral decorria. Acontece, porém, que há trabalhos que não sou capaz de fazer, e esse é um deles: aquilo foi de uma dimensão global (emocional, política, épica) que ultrapassa de longe as minhas capacidades já de si limitadas, e há tarefas que mais vale nem sequer tentar por antecipadamente sabermos que não as executaremos bem. Sei, é claro, dizer o óbvio: que em trinta e sete anos de especial atenção à TV nunca vira nada assim; que, salvo uma ou duas excepções consubstanciadas em anticomunistas profissionalizados, nem mesmo os adversários de Álvaro Cunhal se mancharam disparando contra ele algumas das infames imposturas do costume enquanto desfilava o cortejo que era fúnebre mas que também foi, como todos viram, cortejo de vitória. E quem porventura não acredite em mim, tire-se de dúvidas olhando o título de primeira página do «Público», ponta de lança do anticomunismo na imprensa escrita, na manhã do dia seguinte: «A Última Vitória de Álvaro Cunhal», está lá escrito como testemunho acima de toda a suspeita. E a imagem que acompanha e de algum modo sustenta o título não fica a dever nada, em capacidade informativa, às mais eloquentes imagens transmitidas pelas reportagens dos diversos canais de televisão.
O linchamento falhado
Entretanto, porém, no próprio dia em que morrera Álvaro Cunhal houve alguém na RTP que entendeu ser imperioso e urgente começar desde logo, ainda nem sequer se sabia em que dia é que se iria realizar o funeral, ainda nem sequer havia sido sepultado o general Vasco Gonçalves, a execução de um projecto curioso: uma espécie de vandalização da imagem pública do homem que morrera. Para tanto, cancelou-se à última hora uma emissão da rubrica «Prós e Contras» acerca de fogos florestais, substituindo-se-lhe o tema, que passou a ser a vida e a personalidade de Álvaro Cunhal. Quem veio anunciar a alteração foi a própria Fátima Campos Pereira, desde sempre o rosto do programa mas talvez não a responsável por tudo o que de mau acontece nele antes de cada emissão e no seu decurso. Neste caso, teria sido especialmente significativo que fosse sua a escolha dos convidados em palco, pois tudo indica terem sido escolhidos a dedo, e por dedo sábio, para que na sua maioria pudessem vir dar testemunhos condicionados pelo peso de antigos rancores pessoais. Não quero pensar excessivamente mal de Fátima Campos Ferreira, e por isso prefiro acreditar que pelo menos a jornalista terá sido orientada. Mas também não creio incorrer em possível excesso ao escrever que, aparentemente, a «convocação» para aquele palco de personalidades como Zita Seabra, José Miguel Júdice, Luís Osório, tendia a organizar contra Álvaro Cunhal uma espécie de linchamento público a que talvez se esperasse que dessem alguma colaboração um historiador de apelido Madeira, um ex-membro do C.C. do PCP e o tenente-coronel Vasco Lourenço, quanto a este contando-se talvez que ainda mantivesse abertas em ferida as divergências de 75.
Era um projecto cheio de pressa mas sedutor. Aconteceu, porém, que falhou: pelos vistos mais escrupulosos e com mais pudor que «Prós e Contras», Zita Seabra, José Miguel Júdice e Reis Torgal, este intervindo a partir de Coimbra, disseram expressa e claramente que «aquele não era o momento» de ser feito o que era tacitamente proposto: o julgamento (sem sequer direito a defesa) de um homem que ainda há poucas horas deixara de respirar. Os restantes convidados não contrariaram este entendimento, e no decurso do programa foi quase sempre respeitado um mínimo de verdade e de decência. Quer isto dizer que os convidados daquele «Prós e Contras» vieram implicitamente dizer a Fátima Campos Ferreira que há limites, pelo menos de oportunidade, para a cobardia e para a manipulação. Estou certo de que a jornalista, que será ambiciosa mas não será parva, entendeu a informação. E no dia seguinte foi o que se viu: muitos, muitos mil, a assegurarem com a sua presença que Álvaro Cunhal continua vivo e a combater, multiplicado por todos os que ali estiveram mais os muitos mais que não puderam vir. Isto é: que, como a luta, a sua lição continua.
O linchamento falhado
Entretanto, porém, no próprio dia em que morrera Álvaro Cunhal houve alguém na RTP que entendeu ser imperioso e urgente começar desde logo, ainda nem sequer se sabia em que dia é que se iria realizar o funeral, ainda nem sequer havia sido sepultado o general Vasco Gonçalves, a execução de um projecto curioso: uma espécie de vandalização da imagem pública do homem que morrera. Para tanto, cancelou-se à última hora uma emissão da rubrica «Prós e Contras» acerca de fogos florestais, substituindo-se-lhe o tema, que passou a ser a vida e a personalidade de Álvaro Cunhal. Quem veio anunciar a alteração foi a própria Fátima Campos Pereira, desde sempre o rosto do programa mas talvez não a responsável por tudo o que de mau acontece nele antes de cada emissão e no seu decurso. Neste caso, teria sido especialmente significativo que fosse sua a escolha dos convidados em palco, pois tudo indica terem sido escolhidos a dedo, e por dedo sábio, para que na sua maioria pudessem vir dar testemunhos condicionados pelo peso de antigos rancores pessoais. Não quero pensar excessivamente mal de Fátima Campos Ferreira, e por isso prefiro acreditar que pelo menos a jornalista terá sido orientada. Mas também não creio incorrer em possível excesso ao escrever que, aparentemente, a «convocação» para aquele palco de personalidades como Zita Seabra, José Miguel Júdice, Luís Osório, tendia a organizar contra Álvaro Cunhal uma espécie de linchamento público a que talvez se esperasse que dessem alguma colaboração um historiador de apelido Madeira, um ex-membro do C.C. do PCP e o tenente-coronel Vasco Lourenço, quanto a este contando-se talvez que ainda mantivesse abertas em ferida as divergências de 75.
Era um projecto cheio de pressa mas sedutor. Aconteceu, porém, que falhou: pelos vistos mais escrupulosos e com mais pudor que «Prós e Contras», Zita Seabra, José Miguel Júdice e Reis Torgal, este intervindo a partir de Coimbra, disseram expressa e claramente que «aquele não era o momento» de ser feito o que era tacitamente proposto: o julgamento (sem sequer direito a defesa) de um homem que ainda há poucas horas deixara de respirar. Os restantes convidados não contrariaram este entendimento, e no decurso do programa foi quase sempre respeitado um mínimo de verdade e de decência. Quer isto dizer que os convidados daquele «Prós e Contras» vieram implicitamente dizer a Fátima Campos Ferreira que há limites, pelo menos de oportunidade, para a cobardia e para a manipulação. Estou certo de que a jornalista, que será ambiciosa mas não será parva, entendeu a informação. E no dia seguinte foi o que se viu: muitos, muitos mil, a assegurarem com a sua presença que Álvaro Cunhal continua vivo e a combater, multiplicado por todos os que ali estiveram mais os muitos mais que não puderam vir. Isto é: que, como a luta, a sua lição continua.