Concordatas, Liberdades e Constituição Europeia
Jorge Messias
Nas mentes dos dirigentes capitalistas, a concretização do projecto de Constituição Europeia corresponde a uma espécie de fecho da abóbada de cúpula da globalização. É certo que ultimamente as coisas têm corrido menos bem aos arquitectos da obra. Mas toda essa imensa ameaça envolvente está longe de ter sido varrida dos quatro cantos da terra. Os homens que gerem a intriga gabam-se de ser possível ultrapassar os obstáculos das consultas populares e avançar com alternativas ao esquema proposto por Giscard d'Éstaing: fazendo a limpeza cosmética do actual projecto (mantendo as decisões de fundo e recuperando ou eliminando certas formas de expressão); ou redigindo um texto diferente onde a figura do referendo vinculativo seja apagada. Entregando, assim, todo o poder de decisão às elites políticas, financeiras e religiosas. Estas alternativas encerram, porém, o risco de desencadearem, no futuro, indesejadas convulsões sociais.
Existe, todavia, segundo os especialistas, uma outra possibilidade de retoque do projecto, menos mediática mas bem mais eficaz. A partir da própria estrutura íntima do tratado e por analogia com a arquitectura visto que a engenharia da constituição europeia, tal como é proposta, assemelha-se muito à das pirâmides de degraus. Sobre uma sólida base de pedra, sobrepõem-se sucessivas plataformas, centradas num mesmo eixo mas com perímetros cada vez menores. A cada um dos degraus assim formados, associa-se um mito, uma utopia ou uma relação secreta entre valores: é a Cabala. O interior da pirâmide é cruzado por uma fina rede de câmaras e corredores disfarçados. Exteriormente, a construção impõe-se, no deserto, como emblema do poder, da riqueza e da sabedoria que se oculta no sobrenatural e é apenas possuída por homens escolhidos entre os mais dotados.
A Constituição Europeia tem esta natureza. No cume, exprime o Poder, a Fortuna e a Globalização. Nos sucessivos terraços, forja os projectos da Nova Ordem Mundial. Na paz dos seus gabinetes concluem-se as alianças que garantem a segurança do próprio sistema global. Se a construção ruir, o desastre não será total. Cada plataforma atingida poderá ser reparada, de modo a permitir a sua reconstrução. Assim, para os plutocratas, a recusa nos referendos constitui um simples contratempo. Têm capacidade para se recomporem desses desaires parciais. Sabem que o projecto, mesmo na sua situação mais negativa, constitui um poderoso instrumento de expansão do imperialismo do capital. As potencialidades contidas em cada degrau da pirâmide são autónomas e não dependem de consensos.
A área onde se faz a junção entre o poder político, os interesses financeiros e as centrais eclesiásticas, pode fornecer-nos um exemplo esclarecedor dos métodos utilizados. A operação começou há muitos anos, há mais de vinte, era então conhecido como progressista o actual papa, Joseph Ratzinger. A igreja agitava os problemas da paz. O clero declarava que uma das principais causas das guerras era a falta de liberdade religiosa. Tornava-se urgente, a bem da paz mundial, definir um instrumento legal, reconhecido pelas nações, que garantisse o livre exercício dos cultos e da fé. O debate preliminar dessas matérias deveria envolver, de forma democrática, igrejas, estados e sociedade civil. Estes contactos desenvolveram-se ao longo dos vários anos e culminaram na assinatura, em vários estados, entre o poder religioso e o poder político, de códigos de compromisso. Onde existiam concordatas, as leis de liberdade religiosa integravam-se nesses acordos entre o Estado e o Vaticano. Onde as concordatas ainda não existissem, as constituições nacionais reconheceriam os princípios reconhecidos nas leis religiosas.
Uma das grandes dificuldades que se depararam aos negociadores foi a da classificação das confissões existentes em cada país. No Ocidente, entre igrejas históricas, dissidências e seitas, há milhares de credos diferentes. A solução desta questão exigia a caracterização de cada comunidade crente. Que seitas minoritárias seriam oficialmente reconhecidas? E que direitos diferenciados deviam ser atribuídos às igrejas? Quem teria capacidade e poder de classificação?
A dificuldade foi ultrapassada democraticamente, através da designação de comissões interconfessionais com plenos poderes. Poucos se opuseram a que essas comissões fossem presididas pela igreja que, em cada estado, fosse maioritária e politicamente mais representativa. A Igreja Católica foi a mais beneficiada nesses estatutos de arrumação sócio-política da fé. Nos países ocidentais aumentou o número de concordatas entre a Igreja e o Estado. Os textos dos acordos religiosos, integraram-se nas concordatas. Estas, incorporaram-se nas constituições. E das constituições de cada Estado, passaram à legislação comum, não apenas nas leis já existentes mas como elemento jurídico estruturante das leis futuras.
Assim se fazem os milagres.
Nas mentes dos dirigentes capitalistas, a concretização do projecto de Constituição Europeia corresponde a uma espécie de fecho da abóbada de cúpula da globalização. É certo que ultimamente as coisas têm corrido menos bem aos arquitectos da obra. Mas toda essa imensa ameaça envolvente está longe de ter sido varrida dos quatro cantos da terra. Os homens que gerem a intriga gabam-se de ser possível ultrapassar os obstáculos das consultas populares e avançar com alternativas ao esquema proposto por Giscard d'Éstaing: fazendo a limpeza cosmética do actual projecto (mantendo as decisões de fundo e recuperando ou eliminando certas formas de expressão); ou redigindo um texto diferente onde a figura do referendo vinculativo seja apagada. Entregando, assim, todo o poder de decisão às elites políticas, financeiras e religiosas. Estas alternativas encerram, porém, o risco de desencadearem, no futuro, indesejadas convulsões sociais.
Existe, todavia, segundo os especialistas, uma outra possibilidade de retoque do projecto, menos mediática mas bem mais eficaz. A partir da própria estrutura íntima do tratado e por analogia com a arquitectura visto que a engenharia da constituição europeia, tal como é proposta, assemelha-se muito à das pirâmides de degraus. Sobre uma sólida base de pedra, sobrepõem-se sucessivas plataformas, centradas num mesmo eixo mas com perímetros cada vez menores. A cada um dos degraus assim formados, associa-se um mito, uma utopia ou uma relação secreta entre valores: é a Cabala. O interior da pirâmide é cruzado por uma fina rede de câmaras e corredores disfarçados. Exteriormente, a construção impõe-se, no deserto, como emblema do poder, da riqueza e da sabedoria que se oculta no sobrenatural e é apenas possuída por homens escolhidos entre os mais dotados.
A Constituição Europeia tem esta natureza. No cume, exprime o Poder, a Fortuna e a Globalização. Nos sucessivos terraços, forja os projectos da Nova Ordem Mundial. Na paz dos seus gabinetes concluem-se as alianças que garantem a segurança do próprio sistema global. Se a construção ruir, o desastre não será total. Cada plataforma atingida poderá ser reparada, de modo a permitir a sua reconstrução. Assim, para os plutocratas, a recusa nos referendos constitui um simples contratempo. Têm capacidade para se recomporem desses desaires parciais. Sabem que o projecto, mesmo na sua situação mais negativa, constitui um poderoso instrumento de expansão do imperialismo do capital. As potencialidades contidas em cada degrau da pirâmide são autónomas e não dependem de consensos.
A área onde se faz a junção entre o poder político, os interesses financeiros e as centrais eclesiásticas, pode fornecer-nos um exemplo esclarecedor dos métodos utilizados. A operação começou há muitos anos, há mais de vinte, era então conhecido como progressista o actual papa, Joseph Ratzinger. A igreja agitava os problemas da paz. O clero declarava que uma das principais causas das guerras era a falta de liberdade religiosa. Tornava-se urgente, a bem da paz mundial, definir um instrumento legal, reconhecido pelas nações, que garantisse o livre exercício dos cultos e da fé. O debate preliminar dessas matérias deveria envolver, de forma democrática, igrejas, estados e sociedade civil. Estes contactos desenvolveram-se ao longo dos vários anos e culminaram na assinatura, em vários estados, entre o poder religioso e o poder político, de códigos de compromisso. Onde existiam concordatas, as leis de liberdade religiosa integravam-se nesses acordos entre o Estado e o Vaticano. Onde as concordatas ainda não existissem, as constituições nacionais reconheceriam os princípios reconhecidos nas leis religiosas.
Uma das grandes dificuldades que se depararam aos negociadores foi a da classificação das confissões existentes em cada país. No Ocidente, entre igrejas históricas, dissidências e seitas, há milhares de credos diferentes. A solução desta questão exigia a caracterização de cada comunidade crente. Que seitas minoritárias seriam oficialmente reconhecidas? E que direitos diferenciados deviam ser atribuídos às igrejas? Quem teria capacidade e poder de classificação?
A dificuldade foi ultrapassada democraticamente, através da designação de comissões interconfessionais com plenos poderes. Poucos se opuseram a que essas comissões fossem presididas pela igreja que, em cada estado, fosse maioritária e politicamente mais representativa. A Igreja Católica foi a mais beneficiada nesses estatutos de arrumação sócio-política da fé. Nos países ocidentais aumentou o número de concordatas entre a Igreja e o Estado. Os textos dos acordos religiosos, integraram-se nas concordatas. Estas, incorporaram-se nas constituições. E das constituições de cada Estado, passaram à legislação comum, não apenas nas leis já existentes mas como elemento jurídico estruturante das leis futuras.
Assim se fazem os milagres.