Beta vai para o Iraque

Francisco Mota

Para Manuel Vasquez Montálban

Querido Manolo,
Recebi o teu sms, em que me pedias notícias de John Bettencourt Beta, nosso Agente da Tia. Fiquei surpreendido porque não sabia que no «mais além» houvesse telemóveis mas vejo todos os mercados são bons, desde que dêem lucro.
Pois o nosso Beta, de que te falei em 5 de Janeiro, teve outro grande desgosto com as legislativas, nas quais «eles» aumentaram os votos, os deputados e, sobretudo, deixaram de descer depois de uma data de anos. Beta deu a sua explicação no relatório para o novo chefe, um tal Negroponte, de que te deves lembrar pelos serviços prestados à liberdade e democracia na América Latina, na ONU e, já depois de nos deixares, no Iraque.
Posso dizer-te que o chefe de todas as TIA’s dos EUA achou que a coisa não se devia só ao tal efeito «Jerónimo» e pedia mais explicações.
Beta, sem saber o que dizer, respondeu em tom filosófico: «Em Portugal, tem que se prestar atenção a três princípios importantes:
1. As coisas não são assim ou assado, mas também fritas ou cozidas, conforme a forma como aparecem (princípio ZEN local depois de 500 anos de presença no Oriente)
2. O jogo tem onze de cada lado e só termina quando o árbitro apita (princípio futebolístico-televisivo de suma importância)
3. Nos triângulos rectângulos, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa (princípio geométrico pitagórico).»
Depois de duas semanas de espera, Beta recebeu a decisão definitiva: «Tendo em atenção os três princípios e os bons serviços prestados, damos-lhe a possibilidade de continuar a defender a democracia e a liberdade num destes dois países: Iraque ou Afeganistão. Será substituído em Lisboa imediatamente. Rumsfeld está ao corrente e de acordo».
Beta entendeu. Tinha perdido. A sua casa na Lapa, os seus amigos, que já tinham prudentemente desaparecido, tudo tinha acabado.
Do Iraque sabia que se comiam uns peixes do rio Tigre, os musguff, assados em canas verticais ao redor de uma fogueira. Duvidava que o rio ainda tivesse musgufes com tanta bomba perdida .
Do Afganistão além dos frutos secos bastante bons, só sabia que se comia carneiro, ovelha e vice-versa. As perspectivas não eram brilhantes.
Decidiu despedir-se de Lisboa com um grande jantar. Sozinho.
Sentou-se. Os empregados cirandavam à sua volta. Encheram a mesa com as entradas. Do pastel de bacalhau, soube que era de bacalhau porque uma espinha se lhe espetou na boca. Desconfiou do queijinho fresco do dia, porque estava amarelado e tinha razão: seco e encortiçado. A orelha de porco só lhe soube a vinagre barato.
O vinho branco, que sabia vagamente a rolha e a nada mais, acompanhava a «nossa sopa do mar». Comeu três colheradas de uma coisa que cheirava a marisco defunto há mais de seis meses na Tailândia, mais uns restos acastanhados de robalo e dourada de «aviário» com o respectivo sabor a lodo.
Com o ânimo ainda mais em baixo, aceitou a recomendação do «cabritinho da Beira» acabado de assar e pediu um tinto reserva encorpado. O cabritinho, talvez por engano era borrego velho a tresandar a bedum acompanhado por umas batatas velhas cozidas e rapidamente passadas passadas pela frigideira. Sabiam a isso: a velhas. O tal tinto reserva, tinha morrido como vinho há muitos anos. Tinha perdido toda a acidez, era plano e sabia a carne também velha, com uns toques de acetona. Beta pensou, com razão, que era uns dos piores vinhos que tinha provado na sua vida.
O pudim «Abade de Priscos» ficava muito abaixo de qualquer «flan bocadoce» que havia em todas as mercearias do bairro, com este nome ou outro.
Não protestou, mas o maître percebeu que o jantar não era exactamente do agrado de senhor doutor que era o seu tratamento oficial. Assim, com o café, trouxe-lhe (oferta da casa) uma garrafa especial de garrafeira reservada para os melhores clientes.
Bebeu. Imediatamente as coisas que tinha dentro de si: boca, faringe, laringe, esófago, estômago, intestinos, se uniram num ardor e uma repulsa unânimes. Tudo lhe ardia, tudo protestava. Menos ele.
Pagou (67 euros). Saiu. Sentia-se mal e sobretudo totalmente derrotado.
Numa esquina do Rossio encostou-se a um semáforo a pensar porque, de repente tudo se virava contra ele. Não encontrou resposta. Sentiu uma humidade estranha na perna e no pé direito. Demorou a reagir, mas ainda percebeu que um cão, um rafeiro, tinha utilizado o mesmo semáforo e ele próprio para se aliviar.
«Até os cães», disse em voz alta.


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