«Pobres os pobres que são pobrezinhos ...»

Jorge Messias
Com o respeito que a obra de Guerra Junqueiro merece, permita-se que roubemos a um poema seu o título desta crónica. Aceitando um padrão de valores médios – éticos e estéticos – dominantes no país, na segunda metade do século XIX, o autor de «Os simples» sentia pelos pobres uma vaga simpatia solidária, aliada à noção de que a pobreza era fenómeno social irreversível. «Pobres os pobres que são pobrezinhos/Almas sem lares/Aves sem ninhos». Os versos do poeta traduzem uma consciência de injustiça que, todavia, observa o princípio de que o homem é incapaz de acabar radicalmente com a pobreza e de construir um futuro socialmente mais justo. Os pobres sempre existirão. Deus o quer. Resta-nos praticar a caridade...
Justamente nesses derradeiros anos do século XIX, três contemporâneos de Junqueiro – Marx, Engels e Lenine – sistematizavam as bases teóricas da luta contra a pobreza, a miséria e a exclusão. Escrevia Friedrich Engels no seu trabalho «Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico»: «A lei que equilibra constantemente o excesso relativo da população ou exército industrial de reserva, com o volume e a intensidade da acumulação da riqueza, liga solidamente o trabalhador ao capital... Esta lei origina que à acumulação de capital corresponda uma igual acumulação de miséria. A acumulação de riqueza num dos pólos determina, no pólo oposto, no pólo da classe que produz o seu próprio produto como capital, uma acumulação igual de pobreza, sofrimento, ignorância, embrutecimento e degradação moral " (ver, igualmente, O Capital, K. Marx, cap. 23).
Entravam em choque, desde então, dois conceitos éticos acerca das causas e dos efeitos da pobreza e da miséria. Por um lado, o tradicional e religioso que apresenta a pobreza como a sublimação espiritual do pobre e a miséria como o castigo divino do pecado original. Motivaria a prática das virtudes cristãs. «Os pobres, tê-los-eis sempre convosco...».
Por outro lado, o novo pensamento científico identifica as origens e as consequências sociais da pobreza e liga-as às leis gerais da organização e desenvolvimento da sociedade. O desaparecimento da sociedade capitalista baseada no poder das classes mais ricas iria permitir a gradual construção de uma sociedade sem classes. Compreendeu-se, finalmente, que a pobreza e a miséria são abjectas, nas diferentes facetas que as representam, quer materiais, quer morais.
Decorrido um século, vemos como é evidente que o mesmo quadro geral de valores e contravalores permanece actual. Os dois pólos que Marx e Engels referiam ganharam contornos colossais. A crise que o mundo atravessa e o capitalismo não tem conseguido sacudir, determina dois efeitos terrivelmente nefastos para os pobres: cria cada vez menos ricos ( mas mais ricos em capital acumulado ) e cada vez mais pobres, miseráveis, ignorantes e excluídos. O fosso entre os que tudo possuem e os que nada têm é insondável. A catástrofe será inevitável caso a História se continue a desenvolver neste sentido.
A luta contra a pobreza revela-se, assim, nas suas verdadeiras dimensões. Representa a sobrevivência da própria humanidade. E enquadra-se num combate muito mais amplo, o da luta de classes. Usando uma imagem conhecida, «ao pescador que morre de fome junto ao mar não basta oferecer um peixe para comer. É preciso ensiná-lo a pescar». No caso da luta contra a pobreza, podíamos completar a moralidade da parábola acrescentando que ao pescador não basta que o ensinemos a pescar: é preciso eliminar as causas da sua fome.
Portugal é um país católico, no sentido de que, ao longo de todo o seu passado histórico, a Igreja, o poder político e o poder económico, sempre se interpenetraram. Assim, nas áreas onde actualmente se gera a pobreza, a igreja tem um poder avassalador. Detém o controlo de posições-chave no mundo financeiro. Elabora, em grande parte, as estratégias do Estado neoliberal. Possui capacidade e fortes instrumentos de intervenção nas áreas do crédito, da educação, da saúde, da comunicação social, do desporto, da família, etc. Conhece, portanto, directamente, toda a extensão da miséria material, cultural e moral, que alastra no país. Mas a hierarquia católica é às elites dominantes que continua ligada, como sempre aconteceu. Ainda que, para melhorar a sua própria imagem, proclame a sua «opção pelos pobres», não há ginástica verbal que chegue para ocultar o espectáculo que permanece em cena, de uma instituição que cilindra os pobres com o esplendor da sua fortuna, com a cegueira da sua liturgia e com as alfaias de oiro tiradas das suas arcas ancestrais. A Igreja triunfante é uma igreja dos ricos, promotores da miséria.
A luta contra a pobreza, em Portugal e no resto do mundo, será travada pelos homens livres, lado a lado com o povo católico comum. Mas não pensemos que as poderosas hierarquias religiosas alguma vez possam mudar a sua visão das coisas.


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