Hitler revisitado

Correia da Fonseca
Sociedade das Nações é, como se saberá, um programa do SIC-Notícias que acompanha a vida política internacional e que tem pelo menos duas características marcantes e significativas: a presença de Nuno Rogeiro como único comentador residente e o apoio, suponho que exclusivo, da Fundação Luso-Americana. Convém referir, porém, que a intervenção de Nuno Rogeiro no programa não se limita à área rigorosamente delimitada dos acontecimentos políticos: sendo ele um homem assumidamente de direita, não é dos que têm perante a vida cultural a rejeição espavorida, mesmo quando dissimulada, que marca muita outra gente do mesmo território ideológico. Com um poucochinho de sorte e o eventual favor dos céus até talvez ele descubra, um dia, que a cultura é sempre de esquerda, mesmo quando supõe que o não é. Entretanto é simpático e útil, além de retemperador, que por sua obra e graça os minutos finais de Sociedade das Nações sejam muitas vezes preenchidos com referências a livros, espectáculos, eventos da área das artes. Bem se sabe que o gosto por letras e artes não redime tudo e que a Alemanha nazi também ostentava o gosto por alguma cultura enquanto construía os campos para onde enviava intelectuais e artistas, mas está completamente longe de mim a idiotia (ao menos essa…) de comparar Rogeiro à gente que mandava na Alemanha entre 33 e 45, por muito que mantenha grandes distâncias relativamente às suas escolhas, e não apenas às de carácter político. Ora, aconteceu que no final da mais recente emissão de Sociedade das Nações foi falado, na sequência de uma espécie de ante-estreia havida no Instituto Goethe, o filme A Queda que, ao que parece, pretende reconstituir em termos de fidelidade histórica os últimos oito dias de resistência nazi em Berlim e o suicídio de Hitler. E Nuno Rogeiro disse o que aliás já se vem ouvindo por outras vozes que se referem ao filme: a figura de Adolfo Hitler está de tal modo focada sobre a sua condição de homem que abala e desmente a imagem de monstro desvairado que desde 45 tem vindo a ser popularizada. Por outras palavras: que Hitler não era louco, era um sujeito muito mais próximo da normalidade do que geralmente se supõe.

Um operacional bem armado

Por mim, também acho, e isto independentemente do que irei pensar do filme A Queda quando o vir. O importante, porém, não é o que eu acho, é claro, mas o que as coisas foram e o que a mitificação negativa de Hitler como uma espécie de demónio enlouquecido, quase que desenraizado das circunstâncias do tempo, vem servindo para que se esconda o que foi o nazismo. É certo que há abundantes depoimentos e bibliografia que revelam o nazismo como instrumento cuidadosamente fabricado, financiado e lubrificado com vista à destruição da «ameaça» comunista surgida na Europa depois da guerra 14-18 e da Revolução de Outubro, barricado numa União Soviética em desenvolvimento espectacular a despeito de bloqueios e outras formas de assédio político, económico e propagandístico. Mas esses testemunhos solidamente documentados e fundamentados dificilmente chegam à generalidade do público e, em seu lugar, é proposta a imagem de um Hitler como um cão raivoso que se teria soltado sem que ninguém o açulasse, assim se inocentando os poderosos patrocinadores sem os quais Adolfo nunca teria passado de um falhado enovelado numa amálgama de irrealizáveis projectos e de velhos ódios germânicos. O desenho de Hitler como um louco desprovido de perfil humano é que sempre escondeu os que deram corda à máquina-de-mandar-matar em que de facto ele se tornou. E, de resto, como bem se compreenderá, o mais terrível é que ele não tenha sido um louco, digamos que um pouco «fora deste mundo», mas sim, pelo contrário, um sujeito que outros souberam trabalhar, utilizar, aproveitando dele pendores e fixações que nele existiriam já, mas orientando-o como mero operacional para o que foi o grande objectivo dos poderosos ao longo de quase todo o século XX: a cruzada anticomunista que, aliás, como muito bem se sabe, ainda não foi encerrada. Na verdade, a tragédia ocorrida no bunker de Berlim em 45 foi apenas um revés para os poderes que haviam armado Adolfo Hitler e o seu Terceiro Reich. E bem se pode dizer, parafraseando um estribilho do fascismo português, que enquanto houver um explorado a resistir a cruzada continua.


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