Contra-Reforma e Maquiavel
A Capela Sistina é o cenário da eleição do novo Papa. As negociações, iniciadas há já algum tempo, intensificaram-se desde a morte de João Paulo II, como se pode entrever nos encontros de cardeais que os serviços do Vaticano foram deixando mitigadamente visionar, abrindo clareiras ao mundo por entre a floresta de declarações pias de confiança nos curto-circuitos divinos que, pela oração, vão iluminar o voto dos cardeais.
Cenário mais perfeito para o conclave não poderia ser encontrado. A concepção da Capela, as alterações que foram introduzidas às pinturas aí realizadas, depois de terminada a sua construção, a própria evolução estética do seu principal artista, Miguel Ângelo, ao longo dos anos em que trabalhou nos frescos da capela, as intervenções posteriores na sequência do Concílio de Trento, das ideias da Contra-Reforma e das de Maquiavel, continuam a ser de uma fonte de informação preciosa para se perceber o que vai ser decidido naquele ambiente fabuloso.
A Capela Sistina, um imenso espaço com 36,50 metros de comprimento, 13,40 metros de largura e uma altura de 20 metros e uma abóbada tem uma superfície de 520 metros quadrados. Acabada a arquitectura Perugino é o primeiro artista a intervir descrevendo, nas duas paredes paralela, episódios da vida de Moisés e de Cristo e na parede do altar cenas da Natividade. Continuam os frescos, com episódios do Velho e do Novo Testamento, Pinturicchio, Boticelli, Signorelli. A abóbada, pintada por Pier Matteo d’Amelia era azul estrelada. Miguel Ângelo iria substituía-la por aquilo que é uma das obras mais monumentais e mais conhecidas do nosso eurocêntrico mundo civilizado. Ilustrando a criação do mundo, da separação das trevas da luz até à criação do homem, simbolicamente no eixo central, o surgimento de Eva, o paraíso, a expulsão do paraíso a que seguem o sacrifício e a embriaguez de Noé, o dilúvio e outros episódios até ao painel do altar onde sobrepôs ao fresco pintado por Perugino, a célebre representação do Juízo Final.
O que é mais extraordinário nessa imensa pintura de Miguel Ângelo é o que se anuncia de moderno destruindo o racionalismo, a harmonia espacial, a perspectiva das pinturas renascentistas, que tinham alcançado grande apuro em Masaccio, Cimabue ou Piero de la Francesca. Essa representação é completamente abandonada dando lugar a um espaço que é um pano de fundo, ora vazio ora preenchido por inúmeras personagens que tem tratamento e dimensão desigual, conforme a posição hierárquica que ocupam no teatro expressionista que é a pintura de Miguel Ângelo.
Mas essa pintura, a mais expressiva do mundo cristão, pintada no lugar mais importante da cristandade, a capela particular do Papa, e pintada pelo seu pintor maior, é, na sequência do Concílio de Trento, alvo de muitos ataques. Paulo VI encarrega Daniele Volterra de cobrir as figuras nuas. Esses panejamentos foram considerados insuficientes por Pio V que ordena que se cobram outras partes do fresco consideradas ofensivas da moral. O seu sucessor, Clemente VIII, quis mesmo destruir todo o fresco. Disso foi impedido por intervenção da Academia de S.Luca, não por ter sido tocado subitamente pela graça do fascínio pela arte, mas porque a igreja católica começou a perceber que a excessiva intolerância da Contra-Reforma nessas matérias tirava brilho e aura ao serviço divino. Era o triunfo do realismo político que tinha sido claramente expresso no Concílio de Trento, acomodando as instituições clericais às exigências da vida moderna. Esclarecidos, os doutores da igreja aprenderam ainda mais do que o Príncipe as teorias Maquiavel e os princípios da dualidade moral, até hoje. Uma experiência prática que a Igreja nunca mais esqueceu. Assim se entende que João Paulo II, com um longo e muito activo pontificado, se tenha manifestado contra o neoliberalismo capitalista e se tenha recusado a dar a comunhão aos padres da América Latina e do Sul, que lutam por uma vida minimamente suportável dos mais desfavorecidos, enquanto recebia Pinochet. Que tenha defendido a vida e tenha condenado os sistemas mais imediatos e primários de conter a sida no devastado continente africano. São inúmeras as atitudes, das mais retrógradas às mais suavemente liberais, que não são contraditórias entre si, revelam é um profundo conhecimento e uma grande prática do realismo político e da dualidade moral.
Agora é nesse extraordinário espaço, salvo da fúria dos mais intolerantes e pouco inteligentes contra-reformistas, numa afirmação prática dos princípios acima referidos, que os cardeais vão escolher o novo Papa. Melhor lugar para os entenderem não existe.
A nós resta-nos dar um grande viva a Miguel Ângelo salvo maquiavelicamente para nosso grande prazer!
Cenário mais perfeito para o conclave não poderia ser encontrado. A concepção da Capela, as alterações que foram introduzidas às pinturas aí realizadas, depois de terminada a sua construção, a própria evolução estética do seu principal artista, Miguel Ângelo, ao longo dos anos em que trabalhou nos frescos da capela, as intervenções posteriores na sequência do Concílio de Trento, das ideias da Contra-Reforma e das de Maquiavel, continuam a ser de uma fonte de informação preciosa para se perceber o que vai ser decidido naquele ambiente fabuloso.
A Capela Sistina, um imenso espaço com 36,50 metros de comprimento, 13,40 metros de largura e uma altura de 20 metros e uma abóbada tem uma superfície de 520 metros quadrados. Acabada a arquitectura Perugino é o primeiro artista a intervir descrevendo, nas duas paredes paralela, episódios da vida de Moisés e de Cristo e na parede do altar cenas da Natividade. Continuam os frescos, com episódios do Velho e do Novo Testamento, Pinturicchio, Boticelli, Signorelli. A abóbada, pintada por Pier Matteo d’Amelia era azul estrelada. Miguel Ângelo iria substituía-la por aquilo que é uma das obras mais monumentais e mais conhecidas do nosso eurocêntrico mundo civilizado. Ilustrando a criação do mundo, da separação das trevas da luz até à criação do homem, simbolicamente no eixo central, o surgimento de Eva, o paraíso, a expulsão do paraíso a que seguem o sacrifício e a embriaguez de Noé, o dilúvio e outros episódios até ao painel do altar onde sobrepôs ao fresco pintado por Perugino, a célebre representação do Juízo Final.
O que é mais extraordinário nessa imensa pintura de Miguel Ângelo é o que se anuncia de moderno destruindo o racionalismo, a harmonia espacial, a perspectiva das pinturas renascentistas, que tinham alcançado grande apuro em Masaccio, Cimabue ou Piero de la Francesca. Essa representação é completamente abandonada dando lugar a um espaço que é um pano de fundo, ora vazio ora preenchido por inúmeras personagens que tem tratamento e dimensão desigual, conforme a posição hierárquica que ocupam no teatro expressionista que é a pintura de Miguel Ângelo.
Mas essa pintura, a mais expressiva do mundo cristão, pintada no lugar mais importante da cristandade, a capela particular do Papa, e pintada pelo seu pintor maior, é, na sequência do Concílio de Trento, alvo de muitos ataques. Paulo VI encarrega Daniele Volterra de cobrir as figuras nuas. Esses panejamentos foram considerados insuficientes por Pio V que ordena que se cobram outras partes do fresco consideradas ofensivas da moral. O seu sucessor, Clemente VIII, quis mesmo destruir todo o fresco. Disso foi impedido por intervenção da Academia de S.Luca, não por ter sido tocado subitamente pela graça do fascínio pela arte, mas porque a igreja católica começou a perceber que a excessiva intolerância da Contra-Reforma nessas matérias tirava brilho e aura ao serviço divino. Era o triunfo do realismo político que tinha sido claramente expresso no Concílio de Trento, acomodando as instituições clericais às exigências da vida moderna. Esclarecidos, os doutores da igreja aprenderam ainda mais do que o Príncipe as teorias Maquiavel e os princípios da dualidade moral, até hoje. Uma experiência prática que a Igreja nunca mais esqueceu. Assim se entende que João Paulo II, com um longo e muito activo pontificado, se tenha manifestado contra o neoliberalismo capitalista e se tenha recusado a dar a comunhão aos padres da América Latina e do Sul, que lutam por uma vida minimamente suportável dos mais desfavorecidos, enquanto recebia Pinochet. Que tenha defendido a vida e tenha condenado os sistemas mais imediatos e primários de conter a sida no devastado continente africano. São inúmeras as atitudes, das mais retrógradas às mais suavemente liberais, que não são contraditórias entre si, revelam é um profundo conhecimento e uma grande prática do realismo político e da dualidade moral.
Agora é nesse extraordinário espaço, salvo da fúria dos mais intolerantes e pouco inteligentes contra-reformistas, numa afirmação prática dos princípios acima referidos, que os cardeais vão escolher o novo Papa. Melhor lugar para os entenderem não existe.
A nós resta-nos dar um grande viva a Miguel Ângelo salvo maquiavelicamente para nosso grande prazer!