O báculo doirado
A vida do mundo católico continua a fornecer fartos motivos de interesse.
Em Portugal e no mundo capitalista, a braços com uma crise corrosiva. Diluem-se os contrastes conciliares entre fundamentalistas e progressistas. É particularmente alarmante a mudez das vozes críticas no interior da comunidade religiosa. Parece que a força íntima das igrejas empenhadas na solução dos problemas da humanidade se perdeu para sempre. A teologia da libertação cedeu o passo ao culto de altar do cardeal Wojtyla. Morto, este, esquecido e branqueado de culpas, logo virá um sucessor com reputação mediática de ainda melhor condutor de almas ou de pastor dos fundamentalismos católicos dominantes numa «igreja nova» que é igualzinha à «igreja velha» de João Paulo II. A fórmula que permitirá este milagre passa pelo reforço constante dos princípios da autoridade e da obediência.
Na hierarquia portuguesa, esta operação revela-se cada vez mais evidente. O colégio dos bispos consente abertamente numa atitude acrítica em relação ao poder central da igreja. D. José Policarpo é a figura carismática que aparece agora, com frequência crescente, a dar voz àquilo que, em sua opinião, os bispos querem ou pensam. «Votarei sim à União Europeia», declara com ligeireza sobre o Tratado Europeu - «não creio que no Tratado haja algo que um cristão não possa votar!», conclui dando a indicação do sentido do voto aos católicos portugueses. Imperturbável, afirma catedraticamente em relação à fraude, que «quando a situação de pecado é pública, compete à Igreja defender, também publicamente, a santidade da Eucaristia, não admitindo à comunhão eucarística aqueles que se mantêm publicamente numa situação moral incompatível com a santidade deste sacramento». Palavras que devem ser lidas igualmente à luz dos escândalos que minam a nossa sociedade e a cada passo revelam o envolvimento de muitos poderosos católicos «acima de toda a suspeita». Em vez de cultivar a demagogia, o cardeal-patriarca deveria pois esclarecer, antes do mais, se os seus juízos morais são aplicáveis, ou não, aos ricos e aos poderosos que rodeiam e suportam a igreja católica.
No caso das propostas de despenalização dos actos de interrupção da gravidez (a que D. José teima em chamar liberalização do aborto), o cardeal não hesita em usar palavras redondas importadas do vocabulário típico dos movimentos pró-vida. «Num momento em que Portugal precisa de convergir, não sei se é prudente avançar com uma nova consulta popular à despenalização do aborto. A questão é muito dolorosa e fracturante. Será mais uma página do drama e irá dividir ainda mais a sociedade portuguesa». O exagero verbal usado como arma de arremesso está patente nas palavras de D. José. Mesmo para o senso comum, a proposta de lei de alteração do quadro de legislação do aborto é de um grande comedimento, fica longe das práticas legais reconhecidas noutros países europeus e corresponde às preocupações de muitos casais católicos portugueses envoltos na vida moderna. A verdadeira questão não está em que a despenalização arrisque criar divisões graves na sociedade portuguesa. Mas porque representa um pequeno passo em frente no sentido da dissipação da névoa que a igreja católica, substantivamente integrista procura, a todo o custo, manter.
Duas linhas mais, para se referir a morte de João Paulo ll e o que depois se passou. A morte do cidadão Karol Wojtyla tem de ter a mesma compreensão natural que nos merecem todas as mortes e agonias dos outros cidadãos anónimos e comuns. A morte do Chefe de Estado do Vaticano deve ser tratada, a nível de Estado, segundo os protocolos estabelecidos para tais situações. O que aconteceu e continua a acontecer com os órgãos de comunicação social portugueses - públicos e privados - é uma vergonha para o nosso país. Trata-se de uma operação de contra-informação indecorosa que deve ser cruamente denunciada. Não só porque o branqueamento dos grandes crimes contra a humanidade de que a igreja de João Paulo II se tornou responsável se pode obter assim tão facilmente. Nem apenas por ser prematura esta exibição dos poderes de uma sociedade civil sem escrúpulos que programa os seus conteúdos com base na sua experiência fatimeira e da «guerra fria». A igreja ainda não está a operar em terra conquistada. O que vimos são crónicas das trevas medievais, a provar que a igreja portuguesa não é capaz de ultrapassar o peso das tradição. Uma vez mais, a hierarquia católica não hesitou em utilizar a pior das demagogias, a da imagem, para apelar ao fatalismo populista, para branquear a sua própria história papa e para revalorizar comportamentos e liturgias de que declara, quando lhe convém, desejar afastar-se.
A hierarquia nunca desiste de ocupar o primeiro lugar. É a filosofia do báculo doirado.
Em Portugal e no mundo capitalista, a braços com uma crise corrosiva. Diluem-se os contrastes conciliares entre fundamentalistas e progressistas. É particularmente alarmante a mudez das vozes críticas no interior da comunidade religiosa. Parece que a força íntima das igrejas empenhadas na solução dos problemas da humanidade se perdeu para sempre. A teologia da libertação cedeu o passo ao culto de altar do cardeal Wojtyla. Morto, este, esquecido e branqueado de culpas, logo virá um sucessor com reputação mediática de ainda melhor condutor de almas ou de pastor dos fundamentalismos católicos dominantes numa «igreja nova» que é igualzinha à «igreja velha» de João Paulo II. A fórmula que permitirá este milagre passa pelo reforço constante dos princípios da autoridade e da obediência.
Na hierarquia portuguesa, esta operação revela-se cada vez mais evidente. O colégio dos bispos consente abertamente numa atitude acrítica em relação ao poder central da igreja. D. José Policarpo é a figura carismática que aparece agora, com frequência crescente, a dar voz àquilo que, em sua opinião, os bispos querem ou pensam. «Votarei sim à União Europeia», declara com ligeireza sobre o Tratado Europeu - «não creio que no Tratado haja algo que um cristão não possa votar!», conclui dando a indicação do sentido do voto aos católicos portugueses. Imperturbável, afirma catedraticamente em relação à fraude, que «quando a situação de pecado é pública, compete à Igreja defender, também publicamente, a santidade da Eucaristia, não admitindo à comunhão eucarística aqueles que se mantêm publicamente numa situação moral incompatível com a santidade deste sacramento». Palavras que devem ser lidas igualmente à luz dos escândalos que minam a nossa sociedade e a cada passo revelam o envolvimento de muitos poderosos católicos «acima de toda a suspeita». Em vez de cultivar a demagogia, o cardeal-patriarca deveria pois esclarecer, antes do mais, se os seus juízos morais são aplicáveis, ou não, aos ricos e aos poderosos que rodeiam e suportam a igreja católica.
No caso das propostas de despenalização dos actos de interrupção da gravidez (a que D. José teima em chamar liberalização do aborto), o cardeal não hesita em usar palavras redondas importadas do vocabulário típico dos movimentos pró-vida. «Num momento em que Portugal precisa de convergir, não sei se é prudente avançar com uma nova consulta popular à despenalização do aborto. A questão é muito dolorosa e fracturante. Será mais uma página do drama e irá dividir ainda mais a sociedade portuguesa». O exagero verbal usado como arma de arremesso está patente nas palavras de D. José. Mesmo para o senso comum, a proposta de lei de alteração do quadro de legislação do aborto é de um grande comedimento, fica longe das práticas legais reconhecidas noutros países europeus e corresponde às preocupações de muitos casais católicos portugueses envoltos na vida moderna. A verdadeira questão não está em que a despenalização arrisque criar divisões graves na sociedade portuguesa. Mas porque representa um pequeno passo em frente no sentido da dissipação da névoa que a igreja católica, substantivamente integrista procura, a todo o custo, manter.
Duas linhas mais, para se referir a morte de João Paulo ll e o que depois se passou. A morte do cidadão Karol Wojtyla tem de ter a mesma compreensão natural que nos merecem todas as mortes e agonias dos outros cidadãos anónimos e comuns. A morte do Chefe de Estado do Vaticano deve ser tratada, a nível de Estado, segundo os protocolos estabelecidos para tais situações. O que aconteceu e continua a acontecer com os órgãos de comunicação social portugueses - públicos e privados - é uma vergonha para o nosso país. Trata-se de uma operação de contra-informação indecorosa que deve ser cruamente denunciada. Não só porque o branqueamento dos grandes crimes contra a humanidade de que a igreja de João Paulo II se tornou responsável se pode obter assim tão facilmente. Nem apenas por ser prematura esta exibição dos poderes de uma sociedade civil sem escrúpulos que programa os seus conteúdos com base na sua experiência fatimeira e da «guerra fria». A igreja ainda não está a operar em terra conquistada. O que vimos são crónicas das trevas medievais, a provar que a igreja portuguesa não é capaz de ultrapassar o peso das tradição. Uma vez mais, a hierarquia católica não hesitou em utilizar a pior das demagogias, a da imagem, para apelar ao fatalismo populista, para branquear a sua própria história papa e para revalorizar comportamentos e liturgias de que declara, quando lhe convém, desejar afastar-se.
A hierarquia nunca desiste de ocupar o primeiro lugar. É a filosofia do báculo doirado.