Os cúmplices

Correia da Fonseca
Já aquela espécie de tsunami mediático em torno da agonia de João Paulo II invadira também a televisão portuguesa quando o canal «História» transmitiu um documentário para mim surpreendente. Era acerca de grupos de guerrilheiros antifranquistas que, fiéis à República entretanto assassinada, persistiram em resistir desde 39 até meados dos anos 40, refugiados em montanhas e apoiados por elementos das populações locais. Do que foi contado pelos ainda sobreviventes dessa luta desprendia-se um contorno de epopeia verdadeiramente emocionante, talvez mesmo para os que situam a Guerra Civil de Espanha num tempo tão remoto que já não importa conhecer-lhe pormenores, que provavelmente não imaginam que a luta daqueles resistentes prossegue hoje ainda, afinal, embora por outros meios e noutros contextos. Dias depois, já João Paulo falecera e as emissões dos três canais abertos com maior audiência se dividiam entre a Praça de S. Pedro em Roma e a Sé de Lisboa, a «2:» transmitiu, também um pouco surpreendentemente, um trabalho assinado pelos jornalistas Fernanda Bizarro e Joaquim Vieira intitulado «Franco e Salazar - irmãos ibéricos». Nele se falava também da Guerra Civil de Espanha, mas não apenas dela. Quem ali procurasse o móbil unificador dos dois ditadores e da sua acção, facilmente encontraria o furor anticomunista que ambos utilizaram como justificação para a prática de crimes atrozes que hoje, com a silenciosa cumplicidade de muitos, resvalam para os arquivos do esquecimento, que é o perdão possível para o que de facto é imperdoável. Mas também lá se dizia que a cumplicidade não se limitou ao tempo da Guerra Civil, sobreviveu para lá dela e manteve-se mesmo para lá do final da Segunda Grande Guerra. Como se sabe e o documentário da RTP lembrou, os dois ditadores, cúmplices activos do nazifascismo que mergulhara o mundo numa orgia de sangue, foram poupados pelas democracias ocidentais vencedoras. Porque ainda seriam úteis para a contenção da «ameaça comunista». É perante casos destes que sempre me ocorrem as palavras que um dia escreveu Madeleine Chapsal, jornalista francesa insuspeita de inclinações excessivamente à esquerda: «O anticomunismo é o espelho onde os fascistas se miram e se acham belos».

No Vitória, em 36

Mas, para além do que pode designar-se por informações de carácter geral que é sempre bom recordar num tempo em que se intensificam as tentativas de branqueamento do salazarismo, o documentário da RTP trouxe alguns pormenores quase totalmente ignorados e muito curiosos. Por exemplo: que a tese final de Francisco Franco na Academia Militar teve um tema para nós particularmente interessante: «como invadir Portugal em 28 dias». Outro exemplo: que no bar do antigo Hotel Vitória, hoje Centro de Trabalho Vitória do Partido Comunista Português, bebiam bebidas caras vários pilotos nazis vindos a Portugal para aqui montarem os bombardeiros Junker que, entrados em Portugal por via marítima e decompostos em peças, seriam transferidos para Espanha onde iriam, entre outros feitos, arrasar Guernica. E o documentário citou também outros aspectos da gestão salazarista do apoio à insurreição de Franco, com destaque para a sistemática entrega à gente franquista dos republicanos espanhóis que buscavam asilo entre nós e que, bem se sabia, eram imediatamente assassinados. Os que hoje andam por aí empenhados na reabilitação de Salazar junto da opinião pública, aliás pela boa razão de que eles próprios em enorme parte se assumem como os continuadores possíveis do salazarismo, bem podem mirar as próprias mãos, a ver se não estarão a ficar um pouco salpicadas pelo sangue de espanhóis cujo crime era defenderem um governo saído de eleições democráticas. É que as mãos de Salazar, o «professor» sereno e modesto, mui devoto cristão de missas e eucaristias, estavam encharcadas por esse sangue e também por outras menos sanguinolentas formas de cumplicidade com o nazifascismo de que aliás era confesso discípulo, com foto de Mussolini na secretária e tudo. Manda a verdade dizer que o trabalho de Fernanda Bizarro e Joaquim Vieira não se mostrou liberto, ele próprio, do clima de anticomunismo generalizado que, bem se sabe, sobreviveu a Salazar, ultrapassou Abril e se mantém actuante e eficaz. Assim, historiando a evolução da guerra de 39-45, marca a viragem da inicial dinâmica vitoriosa nazifascista para o processo da sua derrota no mês de Dezembro de 41, quando os Estados Unidos entraram na guerra. Esquece, porém, que Hitler invadira a URSS seis meses antes, que naquele mesmo Inverno de 41 se iniciara a derrota na Frente Leste que terminaria com a entrada do Exército Vermelho em Berlim, três anos e meio depois. Assim se vai reescrevendo a História. Mas isso é matéria para outro dia. Ou para sempre.


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