A violência da expansão contada pela «Peregrinação»
Como foi a expansão portuguesa no Renascimento? Dar novos mundos ao mundo? Evangelizar os povos? Levar a brilhante civilização europeia aos bárbaros? Encontrar nova fauna e flora e fazer importantes descobertas científicas? Humanizar o planeta? Segundo um texto não oficial de um participante da expansão, tratou-se essencialmente de uma tentativa de enriquecer sem olhar a meios, recorrendo facilmente à maior violência possível.
Fernão Mendes Pinto na sua «Peregrinação» conta as inúmeras aventuras por que passou durante 21 anos na Índia, Etiópia, Arábia, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outros países asiáticos, em meados do século XVI. Segundo diz, foi 13 vezes cativo e 16 vendido e sofreu dezenas de naufrágios. Será verdade? Muitos acreditam que se trata de um fundo verídico, mas de uma história com contornos exagerados. De tal maneira assim é que a tradição criou uma pequena brincadeira à volta do nome do autor: «Fernão, mentes? Minto.»
Sejam os pormenores – os nomes das personagens, os diálogos, as cartas, as peripécias, as datas – reais ou não, o importante é que a «Peregrinação» é um relato que reflecte a verdadeira expansão europeia. Sem fazer críticas directas aos actos dos portugueses, o narrador conta as suas acções e diálogos e não precisa de fazer qualquer comentário moral para mostrar como a violência desmesurada e por vezes gratuita marcava o quotidiano dos representantes da grande nação que Portugal dizia ser. Para além das matanças, muitos são os casos de corrupção, roubos, violações, abuso de poder e usurpação de bens que são narrados.
Não seriam os portugueses melhores nem piores do que os outros europeus que chegaram às terras distantes, mas não podem fugir ao epíteto de cruéis. Afonso de Albuquerque, o primeiro vice-rei da Índia, então e hoje herói nacional, é conhecido na China como o «leão dos roubos do mar», narra Mendes Pinto. Os asiáticos conheceram-no, não se limitaram a ter acesso à sua fama construída, como aconteceu connosco. O homem que dá nome à praça onde fica o Palácio de Belém não é famoso no Oriente pelos seus supostos feitos grandiosos, mas por ser um ladrão excepcional.
O herói António de Faria
Este caso é paradigmático do retrato feito por Fernão Mendes Pinto da expansão portuguesa, mas os exemplos repetem-se e multiplicam-se as personagens que mostram o outro lado dos descobrimentos, o lado negro mas real que nos faz ter vergonha da nossa história e que só pode considerar hipócrita qualquer comemoração de 500 anos de «encontros de povos». Porque não se trata de encontros, mas sim de recontros, de lutas entre piratas, de pilhagens de aldeias, de assassinatos em série, de violência desmedida.
António de Faria, dono de bonitas intenções religiosas e de muitas preces a Deus, é um exemplo de um português típico da época, na Ásia. Persegue Coja Acém, um pirata que odeia portugueses porque «um nosso grande capitão lhe matara seu pai e dois irmãos em uma nau que lhe tomara». Ambos têm intentos de vingança, um para vingar a família, outro os conterrâneos. Ganha o mais forte, o português, depois de meses de perseguição, marcados por vários massacres e pilhagens. Vamos recorrer apenas a duas citações. Primeira: «[Vinha António de Faria com a intenção de] com boa pilhagem se refazer de algumas coisas de que vinha falto, porque como a sua saída de Patane foi um pouco apressada, não vinha tão bem provido do necessário.» Segunda: «Depois de fazer dar morte ao Similau e os outros seus companheiros, que foi a lhes mandar lançar os miolos com uma tranca, assim como ele fizera em Liampó a Gaspar de Melo, se embarcou logo com 30 soldados no batel.»
A crueldade usada era tal que uma série de homens aprisionados por António de Faria suicida-se violentamente para não serem mortos às mãos dos portugueses. Mendes Pinto conta: «Animados então os nossos com o nome de Cristo Nosso Senhor, por quem chamavam continuamente, e com a vitória que já conheciam, e com a muita honra que tinham ganho, os acabaram ali de matar e consumir a todos, sem ficarem deles mais que só cinco que tomaram vivos, os quais, depois de presos e atados de pés e mãos, e lançados em baixo na bomba para com tratos se lhes fazerem algumas perguntas, se degolaram às dentadas uns aos outros, com receio da morte que se lhes podia dar. E estes também foram feitos em quartos pelos nossos moços e lançados ao mar.»
Deixemos o comentário final a um mercador egípcio que se encontra num navio assaltado pelos portugueses, quando se dirige ao capitão português: «Este ofício em que agora andas não é muito conforme à lei cristã que no baptista professaste – com o que António de Faria ficou tão atrapalhado que não soube o que lhe respondesse.»
Fernão Mendes Pinto na sua «Peregrinação» conta as inúmeras aventuras por que passou durante 21 anos na Índia, Etiópia, Arábia, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outros países asiáticos, em meados do século XVI. Segundo diz, foi 13 vezes cativo e 16 vendido e sofreu dezenas de naufrágios. Será verdade? Muitos acreditam que se trata de um fundo verídico, mas de uma história com contornos exagerados. De tal maneira assim é que a tradição criou uma pequena brincadeira à volta do nome do autor: «Fernão, mentes? Minto.»
Sejam os pormenores – os nomes das personagens, os diálogos, as cartas, as peripécias, as datas – reais ou não, o importante é que a «Peregrinação» é um relato que reflecte a verdadeira expansão europeia. Sem fazer críticas directas aos actos dos portugueses, o narrador conta as suas acções e diálogos e não precisa de fazer qualquer comentário moral para mostrar como a violência desmesurada e por vezes gratuita marcava o quotidiano dos representantes da grande nação que Portugal dizia ser. Para além das matanças, muitos são os casos de corrupção, roubos, violações, abuso de poder e usurpação de bens que são narrados.
Não seriam os portugueses melhores nem piores do que os outros europeus que chegaram às terras distantes, mas não podem fugir ao epíteto de cruéis. Afonso de Albuquerque, o primeiro vice-rei da Índia, então e hoje herói nacional, é conhecido na China como o «leão dos roubos do mar», narra Mendes Pinto. Os asiáticos conheceram-no, não se limitaram a ter acesso à sua fama construída, como aconteceu connosco. O homem que dá nome à praça onde fica o Palácio de Belém não é famoso no Oriente pelos seus supostos feitos grandiosos, mas por ser um ladrão excepcional.
O herói António de Faria
Este caso é paradigmático do retrato feito por Fernão Mendes Pinto da expansão portuguesa, mas os exemplos repetem-se e multiplicam-se as personagens que mostram o outro lado dos descobrimentos, o lado negro mas real que nos faz ter vergonha da nossa história e que só pode considerar hipócrita qualquer comemoração de 500 anos de «encontros de povos». Porque não se trata de encontros, mas sim de recontros, de lutas entre piratas, de pilhagens de aldeias, de assassinatos em série, de violência desmedida.
António de Faria, dono de bonitas intenções religiosas e de muitas preces a Deus, é um exemplo de um português típico da época, na Ásia. Persegue Coja Acém, um pirata que odeia portugueses porque «um nosso grande capitão lhe matara seu pai e dois irmãos em uma nau que lhe tomara». Ambos têm intentos de vingança, um para vingar a família, outro os conterrâneos. Ganha o mais forte, o português, depois de meses de perseguição, marcados por vários massacres e pilhagens. Vamos recorrer apenas a duas citações. Primeira: «[Vinha António de Faria com a intenção de] com boa pilhagem se refazer de algumas coisas de que vinha falto, porque como a sua saída de Patane foi um pouco apressada, não vinha tão bem provido do necessário.» Segunda: «Depois de fazer dar morte ao Similau e os outros seus companheiros, que foi a lhes mandar lançar os miolos com uma tranca, assim como ele fizera em Liampó a Gaspar de Melo, se embarcou logo com 30 soldados no batel.»
A crueldade usada era tal que uma série de homens aprisionados por António de Faria suicida-se violentamente para não serem mortos às mãos dos portugueses. Mendes Pinto conta: «Animados então os nossos com o nome de Cristo Nosso Senhor, por quem chamavam continuamente, e com a vitória que já conheciam, e com a muita honra que tinham ganho, os acabaram ali de matar e consumir a todos, sem ficarem deles mais que só cinco que tomaram vivos, os quais, depois de presos e atados de pés e mãos, e lançados em baixo na bomba para com tratos se lhes fazerem algumas perguntas, se degolaram às dentadas uns aos outros, com receio da morte que se lhes podia dar. E estes também foram feitos em quartos pelos nossos moços e lançados ao mar.»
Deixemos o comentário final a um mercador egípcio que se encontra num navio assaltado pelos portugueses, quando se dirige ao capitão português: «Este ofício em que agora andas não é muito conforme à lei cristã que no baptista professaste – com o que António de Faria ficou tão atrapalhado que não soube o que lhe respondesse.»