O jogador de xadrez
Há décadas atrás, o norte-americano Bobby Fischer, jogador de xadrez, surgia aos olhos do mundo como mais um sinal da superioridade do «mundo ocidental» sobre o bloco socialista: num encontro realizado em Reikjavic, capital da Islândia, Fischer bateu o soviético Boris Spassky e sagrou-se campeão mundial. Nunca um cidadão dos Estados Unidos alcançara o título mundial da modalidade, o que reforçava o encanto dos aficcionados USA perante o feito. Durante vinte anos, essa aura durou praticamente intacta, até que um dia o campeão aceitou ir defrontar Spassky no Montenegro, território da antiga Jugoslávia. Estava-se em 92, e já então os Estados Unidos haviam decidido que a Jugoslávia era um país para abater e cortar em pedaços, desse modo se possibilitando o avanço da hegemonia norte-americana bem para dentro do Leste, em direcção às fronteiras da antiga URSS. O plano da destruição da Jugoslávia incluía um embargo total que não abria excepção sequer para competições de carácter desportivo, e por consequência estava Bobby Fischer proibido de ir jogar com Boris Spassky no Montenegro. Por lhe parecer que a proibição era um bocado exorbitante, por não gostar de obedecer a disparates, mais provavelmente porque lhe faria imenso jeito ganhar o prémio de três milhões de dólares destinados ao vencedor, de todo improvavelmente por razões ideológicas e cívicas, Bobby Fischer foi mesmo a Montenegro, venceu Spassky e arrecadou o dinheiro. A insubmissão provocou a cólera dos poderes norte-americanos que o fulminaram com várias medidas, o ameaçaram com dez anos de prisão e lhe anularam o passaporte. Fischer passou a viajar com documentação inválida, beneficiando talvez da tolerância de algumas autoridades. Entretanto, terá passado a olhar com olhos mais lúcidos o comportamento das administrações norte-americanas ou mais simplesmente a fazer declarações sem a auto-censura que antes as conveniências imporiam. Assim, diz-se que achou justificado o 11 de Setembro em face do carácter criminoso da política externa dos Estados Unidos. Pelos vistos, Fischer, que nunca tivera o que se chama «um bom feitio», azedara muito. Estando no Japão em Julho de 2004 e tentando sair de lá exibindo o seu passaporte inválido, foi preso e mantido nas prisões japonesas durante oito meses, parece que a pedido dos USA que se preparariam para pedir a sua extradição. Aí interveio a Islândia, o país onde se tornara campeão do mundo em 1973: talvez por reconhecer que era sinistra a perseguição movida a Fischer por pouca coisa, talvez também por algum reconhecimento pela visibilidade internacional que Fischer e Spassky haviam conferido ao país, o governo de Reikjavic concedeu-lhe um passaporte islandês que permitiu a sua saída da prisão e do país. No aeroporto de Tóquio, sem sequer tentar dissimular o seu célebre «mau feitio» e muito menos as suas legítimas razões de queixa, Bobby Fischer, ex-símbolo da superioridade do Ocidente «livre», afirmou que George Bush e Koizumi, o primeiro-ministro japonês, são criminosos de guerra que «deviam ser enforcados». Convenhamos que é uma opinião largamente partilhada, pelo menos quanto a Bush.
Um curioso delito
Vimo-lo na TV, a Bobby Fischer, numa breve reportagem feita no aeroporto: pareceu-me surpreendentemente velho, de longas barbas brancas como um Pai Natal arruinado. Tudo indica que aquele homem não vai acabar bem, num tranquilo bem-estar de campeão reformado, ao contrário do que foi o destino de muitos mestres de xadrez. Poderá dizer-se que para esse previsível desenlace final muito terá contribuído o seu temperamento que anos de acumulados mimos terão tornado ainda mais difícil, mas o certo é que tudo teria sido diferente se em 92 ele tivesse aceite o «diktat» que o proibia de jogar com o grande rival numa cidade que não era nem americana nem russa, mas sim neutra, como mandam as regras. O seu crime foi sustentar que um grande encontro de xadrez não pode ser tratado como lance de um outro xadrez, o da guerra fria que, ao contrário do que geralmente se supõe, não acabou totalmente com a derrota da URSS e o seu desmembramento. O caso é que Bobby Fischer queria jogar xadrez, coisa que ele sabe fazer muito bem, e com isso desobedeceu à política externa dos Estados Unidos num aspecto em que ela se mostrou mais indecentemente totalitária. Se calhar, Fischer desgraçou então, irreversivelmente, a sua vida. Quanto a Bush, é claro que nunca será enforcado, por mais criminoso de guerra que seja. Mas é verdade que ainda subsistem no mundo milhões que olham e ouvem Fischer na TV, olham e ouvem Bush, e sabem entender o que se passa. Esses são a promessa de que chegará o tempo em que um outro campeão poderá ir jogar xadrez a um qualquer Montenegro sem correr o risco de ser perseguido pela administração norte-americana.
Um curioso delito
Vimo-lo na TV, a Bobby Fischer, numa breve reportagem feita no aeroporto: pareceu-me surpreendentemente velho, de longas barbas brancas como um Pai Natal arruinado. Tudo indica que aquele homem não vai acabar bem, num tranquilo bem-estar de campeão reformado, ao contrário do que foi o destino de muitos mestres de xadrez. Poderá dizer-se que para esse previsível desenlace final muito terá contribuído o seu temperamento que anos de acumulados mimos terão tornado ainda mais difícil, mas o certo é que tudo teria sido diferente se em 92 ele tivesse aceite o «diktat» que o proibia de jogar com o grande rival numa cidade que não era nem americana nem russa, mas sim neutra, como mandam as regras. O seu crime foi sustentar que um grande encontro de xadrez não pode ser tratado como lance de um outro xadrez, o da guerra fria que, ao contrário do que geralmente se supõe, não acabou totalmente com a derrota da URSS e o seu desmembramento. O caso é que Bobby Fischer queria jogar xadrez, coisa que ele sabe fazer muito bem, e com isso desobedeceu à política externa dos Estados Unidos num aspecto em que ela se mostrou mais indecentemente totalitária. Se calhar, Fischer desgraçou então, irreversivelmente, a sua vida. Quanto a Bush, é claro que nunca será enforcado, por mais criminoso de guerra que seja. Mas é verdade que ainda subsistem no mundo milhões que olham e ouvem Fischer na TV, olham e ouvem Bush, e sabem entender o que se passa. Esses são a promessa de que chegará o tempo em que um outro campeão poderá ir jogar xadrez a um qualquer Montenegro sem correr o risco de ser perseguido pela administração norte-americana.