G.H., o humano e o inumano

Isabel Araújo Branco
«A Paixão segundo G.H.», de Clarice Lispector, é um livro de paradoxos, reflexo de um processo penoso, doloroso e muito complexo, a paixão de uma mulher que atravessa o sofrimento para atingir um fim, descobrir a essência da vida, o neutro, o nada que afinal é o tudo presente em todos os seres, a matéria original e primitiva, muito anterior ao humano e mais perto da barata do que da mulher. Encontramos esses paradoxos em toda a obra, expressos no processo de G.H. (perder-se para se achar, procurar a falta de sentido para encontrar o sentido, quer viver a remotidão para viver a actualidade, não sabe se a nova realidade é real ou irreal) e em particular nas frases por si produzidas que especificam as múltiplas aparentes contradições: entender é «traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais» ou «voltei a ser a pessoa que nunca fui, a ter o que nunca tive». No fim do livro encontramos a explicação para os paradoxos: «através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno. […] Deus é o que existe, e todos os contraditórios são dentro do Deus, e por isso não O contradizem». Há, pois, um processo feito de antagonismos, mas que, ao fazerem parte do mesmo universo, ao serem contíguos, tocam-se e mostram que afinal não são contraditórios, mas sim as duas faces da mesma verdade. Para se alcançar uma, tem de se passar pela outra inevitavelmente.
É desse caminho que trata «A Paixão segundo G.H.», um percurso em que a mulher se perde para se achar, para descobrir a sua essência, entrar na «crua e bruta glória da natureza», sair do seu mundo e entrar no mundo e na «neutralidade viva», abandonando os seus atributos e permanecendo apenas com o que vem directamente de uma fonte anterior e maior do que a humana, movendo-se para um «inferno» simultaneamente horrível e bom, o neutro «inexplicável e vivo», comparado ao protoplasma, ao sémen e à proteína. Saber é inumano e, ao perder a sua civilização e a sua humanidade, ela sente de forma orgíaca o gosto da identidade das coisas. Ver o plasma da vida «é perigoso, mas não pode ser ruim porque nós somos feitos desse plasma». Esse percurso de descoberta é acentuado pelas frequentes interrogativas que, no entanto, assumem ao mesmo tempo uma afirmativa, como uma aprendizagem onde se vai encontrando as respostas.

Estar vivo «é inumano»

Mulher profundamente social, G.H. era o que os outros recebiam de si e que depois se reflectia nela. No entanto, quando olha para a barata, encontra nela «a identidade de minha vida mais profunda». O seu desejo é «viver daquilo inicial e primordial que exactamente fez com que certas coisas chegassem ao ponto de aspirar a serem humanas», é a despersonalização «como destituição do individual inútil – a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser», a despersonalização «como a grande objectivação de si mesmo». Porque estar vivo também «é inumano», um desconhecido que será «a verdadeira humanização pela qual ansiamos». Por isso, sente que está a viver a pré-história de um futuro, «como uma mulher que nunca teve filhos mas os terá daí a três milénios».
A barata é descrita ao pormenor, ganhando dimensão de sujeito. Os seus olhos são «radiosos e negros», cada um reproduzindo o animal inteiro, como um mise en abisme, da vida dentro da vida, do mundo dentro do mundo, infinitamente. A barata vê-a «com o corpo» e G.H. sente-se a fundir com ela. Os olhos do insecto são insonsos, enquanto o sal das lágrimas da mulher é humano, é sentimento, é palavra, é gosto. Por isso tem de ser substituído pelo neutro.
No fim, a mulher afirma que ao engolir a massa branca da barata «realizara o acto ínfimo» com que se desenraizou e com que passou a poder ser ela mesma sem limite: «Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. [...] Eu era muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse […] ao que já não era eu, ao que já é inumano.»


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