Desgraças, caça e mercado

Correia da Fonseca
No passado domingo, no âmbito de uma breve reportagem em que surgiu não como pivot do Jornal da Noite mas sim como inquirido, Rodrigues Guedes de Carvalho falou dos que designou por «caçadores de desgraças». Trata-se de uns sujeitos que de câmara de vídeo ou máquina fotográfica em punho se aplicam a registar imagens de desgraças várias para depois irem vender o resultado dessa colheita no mercado dos media. No depoimento de Rodrigues de Carvalho estaria decerto implícita uma certa repugnância por esse peculiar tráfico pelo menos um pouco sinistro, mas é claro que ele próprio está por obrigação profissional obrigado a lidar com ele. Aliás, tanto no que ele disse como nas palavras da jornalista Sofia Pinto Coelho, que ouvimos a seguir, foi sensível a presença de uma espécie de binómio com dois termos: alguma repugnância e o dever de informar. Mas aqui talvez se depare uma vez mais com uma questão que não é fácil, a dos contornos, oportunidades e limites desse dever que decerto nem sempre se apresenta com o mesmo carácter imperativo e absoluto, que em cada caso pode depender do balanceamento de valores diversos e de sentidos vários. No caso em questão, a fórmula utilizada por Rodrigo Guedes de Carvalho parecia já comportar um juízo negativo de valor ético: «caçadores de desgraças» significa, é claro, praticantes de um tráfico com mercadorias que não poderiam ser traficadas. E desta prática, que a par de muitas circunstâncias atenuantes e/ou justificativas tem qualquer coisa de infame, é quase inevitável partir para alguma reflexão de âmbito mais amplo, que ultrapassa o território das práticas informativas. Na verdade, se existem os «caçadores de desgraças» com o óbvio propósito de vender a sua caça é porque há mercado para ela, e em princípio mercado suficientemente lucrativo para que sobreleve e dissipe eventuais escrúpulos de um ou outro caçador. Porque, sejamos optimistas, é de crer que isto de ganhar dinheiro com a desgraça alheia ainda suscite desconforto em algum caçador ainda incomodado por remanescentes escrúpulos.

O caminho da indiferença

Esta triste actividade de caça às imagens de desgraças para posterior venda num mercado que as espera, até que tácita se não expressamente as encomenda, porque depois ele por sua vez as colocará, e com a conveniente margem de lucro, num outro mercado, o do «voyeurismo», é quase uma alegoria emblemática do inescrúpulo que circula nas próprias veias da lógica capitalista. Bem se sabe que estamos num tempo em que tudo é mercandejável porque mercandejar parece ter-se tornado o único sentido da vida. No caso dos «caçadores de desgraças», a prática até parece inocente e razoável: se as coisas acontecem, é legítimo e porventura necessário que o mundo saiba o que aconteceu e como aconteceu, e nesse quadro a fixação de imagens e a sua venda até surgem com o carácter de utilidade social que é justo remunerar. Porém, não sejamos tão ingénuos que ignoremos que este tipo de comércio gera perversões. Não vou ao ponto de lembrar aqueles casos em que o «caçador» pagou para que fossem encenadas reconstituições de acontecimentos dramáticos que escaparam à sua objectiva e estas fossem reproduzidas em faz-de-conta com vítimas eventualmente mortas a sério, para maior realismo. Mas lembro o frequente risco, quando não efeito procurado, de o conjunto de imagens postas a correr mundo através dos circuitos comerciais não corresponder, afinal, à realidade acontecida. E lembro, é claro, que a busca das imagens mais agressivas das sensibilidades, e por isso mesmo mais vendáveis e com mais alta cotação, é factor que contribui decisivamente para o efeito de habituação e consequente indiferença perante os grandes horrores que vão povoando o mundo quer por mão dos homens quer por efeito de cataclismos naturais. São diversos os formatos das desgraças, serão consequência das guerras semeadas por quem delas espera boa colheita ou de um movimento mais brutal da crosta terrestre, mas os «caçadores» estão lá e as imagens que põem à venda são cada vez mais cruas, decerto porque é assim que o mercado mais aprecia e melhor as paga. Talvez, quem sabe?, porque o mercado das tragédias, ou melhor, das imagens que as ilustram esteja a ficar saturado. De qualquer modo, continua a ser um interessante indicador da civilização mercantil que lhe permitiu surgir e florescer. Que acabou por tornar o horror um dado perfeitamente integrável num quotidiano progressivamente desumanizado. Sem que se dê por isso. O que apela para alguma reflexão.


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