Conflitos de classe
Ferreira de Castro morreu há trinta anos e hoje as suas obra já se tornaram clássicos. «A Selva» – provavelmente a sua obra mais popular – é um romance de conflitos. Conflito entre a esperança e a desilusão, entre a experiência e a inexperiência, entre a realidade e a aparência, entre o individual e o colectivo, entre a selva e o homem, entre exploradores e explorados.
O que são os seringueiros, personagens do romance «A Selva», de Ferreira de Castro? Homens livres e inteligentes? Miseráveis que seguem ordens para alcançar o seu objectivo, ser um pouco mais ricos (ou simplesmente menos pobres, conforme a sorte), entrando voluntariamente num esquema sem saída, em que continuam a ser explorados? O que os move? Quais os seus objectivos e o que vêem na selva? Este é um ponto fundamental: é a esperança num futuro melhor que os faz movimentar.
«O Paraíso! Lá está o Paraíso!», gritam no barco quando se aproximam do seringal. O nome do cauchal, «Paraíso», representa a esperança de todos os homens que para lá vão trabalhar. Mas há mais símbolos, como o nome da embarcação que os transporta ate lá: «Justo…». Aliás, no início do capítulo II, os cearenses admiram «os dois convezes, ambos encharcados de luz», que, «a jorros», ilumina «os negros porões» que os aguardam para várias semanas de viagem.
Mas essa esperança é desde o início equilibrada com informações da exploração de que os seringueiros são vítimas. Logo no primeiro capítulo, Alberto recorda que em «todos os cais de Belém a Manaus» são conhecidos os «dramas» destes homens e a exploração que os prende à selva. «(…) Todo esse “Eldourado” (…) se alimentava do sangue que rudes párias convertiam em oiro, no centro misterioso da floresta», lê-se.
A desilusão acentua-se logo à chegada ao seringal. Os seringueiros que esperam os «brabos», os homens recém-chegados, irritam-se com a sua ingenuidade e, acima de tudo, com as suas esperanças, as mesmas com que eles ali chegaram e que entretanto perceberam que são apenas ilusões, desmentidas diariamente pela dívida a Juca Tristão e pela dureza da vida na selva. Esse confronto entre esperança e decepção é de tal modo acentuado que os velhos seringueiros são vistos pelos «brabos», «não como homens nascidos na mesma terra e trilhando a mesma via dolorosa, mas como inimigos a quem nada comovia».
O narrador vai fundamentando esse desalento. «Havia ruído o sonho que os trouxera ali», afirma, explicando que as dívidas dos seringueiros a Juca Tristão iam aumentando, «mesmo aos que tinham, após muita labuta e economia, obtido algum saldo». Rapidamente o narrador passa das múltiplas referências à fé no futuro para repetidas alusões à exploração e ao consequente desapontamento dos seringueiros. Os companheiros de Alberto contam os seus percursos, acrescentando sempre comentários em que mostram o seu descontentamento e o seu desânimo. Só a cachaça os consola, a «bebida que estrangula a tristeza nas longínquas solidões». Porque «a embriaguez periódica era a única evasão do espírito, o único facho na longa noite de masmorra verde». E, mesmo sabendo que nas terras de origem encontrarão exactamente a mesma miséria que os empurrou para ali, os seringueiros só pensam em voltar para lá.
Experiência vs inexperiência
Este confronto entre esperança e desilusão encerra em si outro confronto, o da experiência contra a ignorância ou inexperiência. Isso é patente, por exemplo, no referido episódio da chegada dos «brabos» ao seringal, bem como em todo o processo de desengano dos seringueiros. E, nesta luta, quem ganha é a experiência.
Esta vitória é mais visível em Alberto, o protagonista do romance, estudante monárquico português que fugiu para o Brasil e que é pressionado pelo tio para trabalhar no seringal. Ele vivencia uma evolução e um processo de consciencialização, em que a experiência e as observações são determinantes. Alberto vai-se tornando mais parecido com os companheiros mal vai para a selva. Primeiro é a roupa, depois a preocupação com os índios, o inimigo mais imediato. Sucessivamente, vemos o seu pensamento concentrar-se nas contas e a oposição a Juca Tristão crescer. A obsessão com a dívida e o desespero passam a ser uma constante.
A «paixão» de Alberto por Dona Yáyá é importante não por ser um caso romântico – aliás, não tem nada de romântico, é puramente sexual –, mas por a obsessão (que se torna ainda mais visível por se tratar de uma mulher mais velha) o igualar aos outros seringueiros. Firmino tinha, pois, razão quando dizia, no capítulo VI, que também ele cairia nos mesmos actos: «Você verá, seu moço, você verá…». Alberto chega a pensar matar Guerreiro para ficar com Dona Yáyá e, mais tarde, tenta violar nhá Vitória. A experiência ganha à inexperiência. Ele próprio admite que é como todos os homens que ali se encontram. O mais importante é ele perceber isso.
O fim do romance consolida a vitória da experiência e do conhecimento prático, quando Alberto decide nunca acusar ninguém no decurso da sua futura profissão como advogado, adoptando um vocabulário veemente, em que sobressai um tom vigoroso. Uma palavra destaca-se das outras, revelando um outro dado importante, a derrota da ideologia monárquica: igualar.
A selva e os seringueiros
Para lá da ideologia e dos antecedentes que os levam para o interior da Amazónia, há uma diferença fundamental entre Alberto e outros seringueiros: ele teme desde o início a nova experiência, porque sente que tem algo a perder. Os outros não têm nada, por isso arriscam, entregam-se à vida, à sorte, à esperança, ao trabalho, à possibilidade – não importa se grande se pequena, é uma possibilidade e é isso que interessa – de melhorar a sua existência e a da família. Alberto não tem família. Neste ponto, os outros expõem-se mais por serem responsáveis por pessoas que ficam longe e que terão de sobreviver sem eles.
Todos lutam contra a selva, elemento tão importante que inclusivamente dá nome ao romance. É indirectamente graças à floresta que Alberto se transforma. É a selva que alimenta a ambição dos homens e permite a exploração dos donos dos seringais. O narrador vai dando ao longo da obra uma visão quase demoníaca da selva. A floresta é o predador e o homem a presa: «Dir-se-ia que a selva, como uma fera, aguardava há muitos milhares de anos a chegada de maravilhosa e incognoscível presa.»
«A selva dominava tudo», lê-se no capítulo V, enquanto «o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo». O seringueiro é minúsculo face ao poderio da selva e, mesmo alimentando-se dela, não pode contra ela. A selva é cruel e o homem insignificante. Tudo tem um lado humano, menos a floresta, «uma natureza complexa e impiedosa, que dava aos homens constantes exemplos de desumanidade» – como sublinha o narrador no final do capítulo VI. A selva é um ser colectivo que impressiona pela sua complexidade, feita de mil variedades de árvores e de animais. O conjunto é repetidamente salientado pelo narrador, revelando a sua força inquestionável e invencível.
Os seringueiros formam outro grupo, mais que não seja pela sua luta contra o «monstro verde». E pela partilha das tremendas dificuldades que ali enfrentam. Entre elas encontra-se Juca Tristão, representante da individualidade e domínio de um homem sobre centenas de pessoas. Esta colectividade dos trabalhadores remete-nos para a «epopeia» de que o autor fala no pórtico.
O fim da esperança equivale à consciência da exploração. O conflito entre as classes sociais é muito marcado. Os seringueiros são explorados por Juca Tristão – o «amo», como é muitas vezes referido pelo narrador – de diversas formas, desde o custo da viagem até aos preços dos produtos que lhes vende, passando naturalmente pela falta de condições que as barracas têm – o narrador nunca usa a palavra «casa» – e pelo baixo preço a que lhes compra a borracha. Os homens muitas vezes protestam, mas acabam por se resignar com medo da reacção do patrão. Este tem mais poder e só é vencido pela morte.
Evolução pessoal
Ouvindo as histórias dos companheiros e partilhando com eles a experiência na selva, Alberto vai modificando as suas concepções sobre a sociedade e começa a compreender os cearenses, elementos do povo que a sua ideologia monárquica tanto desprezava. Mas este é um processo longo. A visita a Manaus é a sua primeira revolta. Segue-se um período em que o português fica dividido entre as ilações que tira do que vai vendo e vivendo e as suas convicções iniciais. Por exemplo, no primeiro domingo, depois de discutir com Juca, ainda acredita na boa vontade do patrão. Mais tarde, reconhece que lisonjeou o patrão quando este lhe ofereceu emprego na sede e considera que a causa foi a miséria que passou na selva. Mas, aos poucos, vai-se modificando interiormente. Critica os seus comportamentos altivos e, no fim do capítulo IX, recorda a «severa ideia de classes» do pai, antes partilhada por si, e arrepende-se da forma como tratava a criada e de todos os seus comportamentos classistas. A culpa da sua ida para a selva já não é da república (como afirma no primeiro capítulo), mas da monarquia.
A partir daqui, poucas são as hesitações. Sente-se um outro homem, assumindo «uma razão diferente e um sentimento de justiça nova, mais profunda e mais vasta». Alberto vê as facturas de Juca e percebe o valor dos lucros dos seus à custa dos seringueiros. Quando este lhe perdoa a dívida, fica impressionado com a sua generosidade, mas depressa reconhece que aquele dinheiro lhe era devido e lembra-se dos outros seringueiros e da sorte que ele teve só por ser branco. Pouco depois, assume em conversa com Juca que já não é monárquico, que aprendeu muito ali e que acredita na justiça e que os desejos das massas vencerão: «É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida, a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. (…) A sede de justiça que há por toda a parte acabará por marchar à frente… (…) Eu, hoje, sou diferente do que fui… Sinto que mudei bastante. Há muitas coisas que eu não dava por elas e agora dou. Penso que têm razão os que querem um mundo mais justo.»
O final do romance confirma o desejo de justiça de Alberto. Tiago, antigo escravo que adorava Juca, pega fogo à casa da sede do seringal, procurando terminar o castigo aos fugitivos e à «escravatura» do patrão. Ele, que foi escravo, não admite mais escravos, sendo o primeiro a dar valor à liberdade. O seu objectivo não é salvar aqueles homens, mas preservar a liberdade. E sabe que só a morte pode deter o «amo».
É o princípio da dominação da selva que o autor ambicionava. «Realmente, a Amazónia, é a última página, ainda a escrever-se, do Génesis», lê-se numa das citações de Euclides da Cunha que abrem o romance. Ferreira de Castro escreveu, senão essa página, pelo menos uma parte dela n’«A Selva».
Romance autobiográfico ou epopeia?
«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» É com estas palavras que Ferreira de Castro abre o seu «Pórtico», introdução a «A Selva», num texto em que aborda a sua experiência pessoal no Amazonas.
Logo desde o início do livro fica, pois, clara a estreita ligação entre a biografia do autor e o romance. Aliás, no mesmo «pórtico», o autor faz questão de afirmar que «estão aqui, amarelecidos pelo tempo, os papéis onde tracei as minhas impressões de adolescente – as minhas primeiras impressões ante o mundo novo, bárbaro e assombroso, que se me revelava», podendo mesmo ter usado esses apontamentos na escrita d’«A Selva».
Sendo Ferreira de Castro profundamente marcado pela experiência da floresta amazónica e assumindo-o logo de início, é fácil adivinhar que a ficção será inevitavelmente influenciada pelas suas vivências, reflexões e ilações. Isso, de facto, verifica-se ao longo do livro, existindo vários momentos em que é difícil distinguir o narrador do protagonista, Alberto, estudante de Direito exilado no Brasil que se vê obrigado a ir trabalhar para a selva.
Contudo, não se pode falar de autobiografia, mas sim de romance autobiográfico, pois a presença de parte da biografia do autor mistura-se com a ficcionalidade da obra. São relatados eventos e descritos espaços indissociáveis do testemunho e da vivência pessoal do autor, registando-se a identidade do protagonista com o autor, não só no facto de Ferreira de Castro ter passado a adolescência no interior da Amazónia, mas também por ter trabalhado no Seringal «Paraíso», nas margens do Rio Madeira, e ter vivido em Belém do Pará, tal como Alberto.
Ferreira de Castro afirma que devia este livro à selva, «pelo muito que nela sofri», e «sobretudo aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça.»
Ele encarrega-se de redigir parte dessa crónica, contar os seus dias e os seus trabalhos, registar vidas e experiências, inscrever esperanças e sofrimentos. É que «a luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha – da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável».
Heróis vivos
Ferreira de Castro fala de epopeia, heroicidade e luta contra um ser implacável. Mas será «A Selva» uma epopeia? Bachtin aponta três características fundamentais a este género literário: a epopeia trata do passado épico nacional, tem como fonte a tradição nacional (e não a experiência individual) e a sua acção está separada do presente por uma «distância épica absoluta». Outras características da epopeia prendem-se com o seu pendor histórico-comunitário, situando-se num passado desligado do presente, não remetendo para o presente histórico do receptor. Por outro lado, assume uma entoação heróica (eventos bélicos, confrontações com os elementos atmosféricos, proezas sobrenaturais), as personagens conservam uma ligação estreita com os deuses e desenrola grandes temas, ideias e valores.
«A afirmação de empreendimentos excepcionais, a competição dos deuses com os homens, a representação do destino colectivo de comunidades de alcance nacional [presentes na epopeia], deixam de fazer sentido quando está em cena a personagem individualizada, trivial e muitas vezes problemática que no romance burguês e no realismo crítico se nos apresenta» , lê-se no «Dicionário de Narratologia».
«A Selva» confirma estas palavras? Trata-se de uma obra em que o colectivo é muito marcado. Em primeiro lugar, pela gesta dos seringueiros, os antigos companheiros do autor que ele decidiu cantar. Ou seja, os seringueiros constituem uma personagem colectiva que se vai revelando ao longo da obra a Alberto e ao mesmo tempo ao leitor, que, independentemente de usar ou não o fruto do seu trabalho, desconhece com certeza as suas vidas.
«A Selva» trata de uma comunidade, não nacional, mas uma comunidade que o autor considera que é constituída por heróis, heróis vivos e contemporâneos. O romance afasta-se nestes pontos do conceito de epopeia. Contudo, assume uma certa entoação heróica, integrando confrontos bélicos (referência a combates com os índios) e conflitos com a natureza (a luta com a selva, os animais, as cheias do rio). Proezas sobrenaturais não existem, nem qualquer ligação com o divino, sendo pelo contrário bem marcante a humanidade das personagens, isoladas no seio na floresta, à mercê das regras impostas pelo patrão, Juca Tristão, dono do seringal. Mas exactamente aqui voltamos a tocar nas características da epopeia, pois a obra regista a «busca de pão e de justiça» daqueles homens.
«O Paraíso! Lá está o Paraíso!», gritam no barco quando se aproximam do seringal. O nome do cauchal, «Paraíso», representa a esperança de todos os homens que para lá vão trabalhar. Mas há mais símbolos, como o nome da embarcação que os transporta ate lá: «Justo…». Aliás, no início do capítulo II, os cearenses admiram «os dois convezes, ambos encharcados de luz», que, «a jorros», ilumina «os negros porões» que os aguardam para várias semanas de viagem.
Mas essa esperança é desde o início equilibrada com informações da exploração de que os seringueiros são vítimas. Logo no primeiro capítulo, Alberto recorda que em «todos os cais de Belém a Manaus» são conhecidos os «dramas» destes homens e a exploração que os prende à selva. «(…) Todo esse “Eldourado” (…) se alimentava do sangue que rudes párias convertiam em oiro, no centro misterioso da floresta», lê-se.
A desilusão acentua-se logo à chegada ao seringal. Os seringueiros que esperam os «brabos», os homens recém-chegados, irritam-se com a sua ingenuidade e, acima de tudo, com as suas esperanças, as mesmas com que eles ali chegaram e que entretanto perceberam que são apenas ilusões, desmentidas diariamente pela dívida a Juca Tristão e pela dureza da vida na selva. Esse confronto entre esperança e decepção é de tal modo acentuado que os velhos seringueiros são vistos pelos «brabos», «não como homens nascidos na mesma terra e trilhando a mesma via dolorosa, mas como inimigos a quem nada comovia».
O narrador vai fundamentando esse desalento. «Havia ruído o sonho que os trouxera ali», afirma, explicando que as dívidas dos seringueiros a Juca Tristão iam aumentando, «mesmo aos que tinham, após muita labuta e economia, obtido algum saldo». Rapidamente o narrador passa das múltiplas referências à fé no futuro para repetidas alusões à exploração e ao consequente desapontamento dos seringueiros. Os companheiros de Alberto contam os seus percursos, acrescentando sempre comentários em que mostram o seu descontentamento e o seu desânimo. Só a cachaça os consola, a «bebida que estrangula a tristeza nas longínquas solidões». Porque «a embriaguez periódica era a única evasão do espírito, o único facho na longa noite de masmorra verde». E, mesmo sabendo que nas terras de origem encontrarão exactamente a mesma miséria que os empurrou para ali, os seringueiros só pensam em voltar para lá.
Experiência vs inexperiência
Este confronto entre esperança e desilusão encerra em si outro confronto, o da experiência contra a ignorância ou inexperiência. Isso é patente, por exemplo, no referido episódio da chegada dos «brabos» ao seringal, bem como em todo o processo de desengano dos seringueiros. E, nesta luta, quem ganha é a experiência.
Esta vitória é mais visível em Alberto, o protagonista do romance, estudante monárquico português que fugiu para o Brasil e que é pressionado pelo tio para trabalhar no seringal. Ele vivencia uma evolução e um processo de consciencialização, em que a experiência e as observações são determinantes. Alberto vai-se tornando mais parecido com os companheiros mal vai para a selva. Primeiro é a roupa, depois a preocupação com os índios, o inimigo mais imediato. Sucessivamente, vemos o seu pensamento concentrar-se nas contas e a oposição a Juca Tristão crescer. A obsessão com a dívida e o desespero passam a ser uma constante.
A «paixão» de Alberto por Dona Yáyá é importante não por ser um caso romântico – aliás, não tem nada de romântico, é puramente sexual –, mas por a obsessão (que se torna ainda mais visível por se tratar de uma mulher mais velha) o igualar aos outros seringueiros. Firmino tinha, pois, razão quando dizia, no capítulo VI, que também ele cairia nos mesmos actos: «Você verá, seu moço, você verá…». Alberto chega a pensar matar Guerreiro para ficar com Dona Yáyá e, mais tarde, tenta violar nhá Vitória. A experiência ganha à inexperiência. Ele próprio admite que é como todos os homens que ali se encontram. O mais importante é ele perceber isso.
O fim do romance consolida a vitória da experiência e do conhecimento prático, quando Alberto decide nunca acusar ninguém no decurso da sua futura profissão como advogado, adoptando um vocabulário veemente, em que sobressai um tom vigoroso. Uma palavra destaca-se das outras, revelando um outro dado importante, a derrota da ideologia monárquica: igualar.
A selva e os seringueiros
Para lá da ideologia e dos antecedentes que os levam para o interior da Amazónia, há uma diferença fundamental entre Alberto e outros seringueiros: ele teme desde o início a nova experiência, porque sente que tem algo a perder. Os outros não têm nada, por isso arriscam, entregam-se à vida, à sorte, à esperança, ao trabalho, à possibilidade – não importa se grande se pequena, é uma possibilidade e é isso que interessa – de melhorar a sua existência e a da família. Alberto não tem família. Neste ponto, os outros expõem-se mais por serem responsáveis por pessoas que ficam longe e que terão de sobreviver sem eles.
Todos lutam contra a selva, elemento tão importante que inclusivamente dá nome ao romance. É indirectamente graças à floresta que Alberto se transforma. É a selva que alimenta a ambição dos homens e permite a exploração dos donos dos seringais. O narrador vai dando ao longo da obra uma visão quase demoníaca da selva. A floresta é o predador e o homem a presa: «Dir-se-ia que a selva, como uma fera, aguardava há muitos milhares de anos a chegada de maravilhosa e incognoscível presa.»
«A selva dominava tudo», lê-se no capítulo V, enquanto «o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo». O seringueiro é minúsculo face ao poderio da selva e, mesmo alimentando-se dela, não pode contra ela. A selva é cruel e o homem insignificante. Tudo tem um lado humano, menos a floresta, «uma natureza complexa e impiedosa, que dava aos homens constantes exemplos de desumanidade» – como sublinha o narrador no final do capítulo VI. A selva é um ser colectivo que impressiona pela sua complexidade, feita de mil variedades de árvores e de animais. O conjunto é repetidamente salientado pelo narrador, revelando a sua força inquestionável e invencível.
Os seringueiros formam outro grupo, mais que não seja pela sua luta contra o «monstro verde». E pela partilha das tremendas dificuldades que ali enfrentam. Entre elas encontra-se Juca Tristão, representante da individualidade e domínio de um homem sobre centenas de pessoas. Esta colectividade dos trabalhadores remete-nos para a «epopeia» de que o autor fala no pórtico.
O fim da esperança equivale à consciência da exploração. O conflito entre as classes sociais é muito marcado. Os seringueiros são explorados por Juca Tristão – o «amo», como é muitas vezes referido pelo narrador – de diversas formas, desde o custo da viagem até aos preços dos produtos que lhes vende, passando naturalmente pela falta de condições que as barracas têm – o narrador nunca usa a palavra «casa» – e pelo baixo preço a que lhes compra a borracha. Os homens muitas vezes protestam, mas acabam por se resignar com medo da reacção do patrão. Este tem mais poder e só é vencido pela morte.
Evolução pessoal
Ouvindo as histórias dos companheiros e partilhando com eles a experiência na selva, Alberto vai modificando as suas concepções sobre a sociedade e começa a compreender os cearenses, elementos do povo que a sua ideologia monárquica tanto desprezava. Mas este é um processo longo. A visita a Manaus é a sua primeira revolta. Segue-se um período em que o português fica dividido entre as ilações que tira do que vai vendo e vivendo e as suas convicções iniciais. Por exemplo, no primeiro domingo, depois de discutir com Juca, ainda acredita na boa vontade do patrão. Mais tarde, reconhece que lisonjeou o patrão quando este lhe ofereceu emprego na sede e considera que a causa foi a miséria que passou na selva. Mas, aos poucos, vai-se modificando interiormente. Critica os seus comportamentos altivos e, no fim do capítulo IX, recorda a «severa ideia de classes» do pai, antes partilhada por si, e arrepende-se da forma como tratava a criada e de todos os seus comportamentos classistas. A culpa da sua ida para a selva já não é da república (como afirma no primeiro capítulo), mas da monarquia.
A partir daqui, poucas são as hesitações. Sente-se um outro homem, assumindo «uma razão diferente e um sentimento de justiça nova, mais profunda e mais vasta». Alberto vê as facturas de Juca e percebe o valor dos lucros dos seus à custa dos seringueiros. Quando este lhe perdoa a dívida, fica impressionado com a sua generosidade, mas depressa reconhece que aquele dinheiro lhe era devido e lembra-se dos outros seringueiros e da sorte que ele teve só por ser branco. Pouco depois, assume em conversa com Juca que já não é monárquico, que aprendeu muito ali e que acredita na justiça e que os desejos das massas vencerão: «É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida, a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. (…) A sede de justiça que há por toda a parte acabará por marchar à frente… (…) Eu, hoje, sou diferente do que fui… Sinto que mudei bastante. Há muitas coisas que eu não dava por elas e agora dou. Penso que têm razão os que querem um mundo mais justo.»
O final do romance confirma o desejo de justiça de Alberto. Tiago, antigo escravo que adorava Juca, pega fogo à casa da sede do seringal, procurando terminar o castigo aos fugitivos e à «escravatura» do patrão. Ele, que foi escravo, não admite mais escravos, sendo o primeiro a dar valor à liberdade. O seu objectivo não é salvar aqueles homens, mas preservar a liberdade. E sabe que só a morte pode deter o «amo».
É o princípio da dominação da selva que o autor ambicionava. «Realmente, a Amazónia, é a última página, ainda a escrever-se, do Génesis», lê-se numa das citações de Euclides da Cunha que abrem o romance. Ferreira de Castro escreveu, senão essa página, pelo menos uma parte dela n’«A Selva».
Romance autobiográfico ou epopeia?
«É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» É com estas palavras que Ferreira de Castro abre o seu «Pórtico», introdução a «A Selva», num texto em que aborda a sua experiência pessoal no Amazonas.
Logo desde o início do livro fica, pois, clara a estreita ligação entre a biografia do autor e o romance. Aliás, no mesmo «pórtico», o autor faz questão de afirmar que «estão aqui, amarelecidos pelo tempo, os papéis onde tracei as minhas impressões de adolescente – as minhas primeiras impressões ante o mundo novo, bárbaro e assombroso, que se me revelava», podendo mesmo ter usado esses apontamentos na escrita d’«A Selva».
Sendo Ferreira de Castro profundamente marcado pela experiência da floresta amazónica e assumindo-o logo de início, é fácil adivinhar que a ficção será inevitavelmente influenciada pelas suas vivências, reflexões e ilações. Isso, de facto, verifica-se ao longo do livro, existindo vários momentos em que é difícil distinguir o narrador do protagonista, Alberto, estudante de Direito exilado no Brasil que se vê obrigado a ir trabalhar para a selva.
Contudo, não se pode falar de autobiografia, mas sim de romance autobiográfico, pois a presença de parte da biografia do autor mistura-se com a ficcionalidade da obra. São relatados eventos e descritos espaços indissociáveis do testemunho e da vivência pessoal do autor, registando-se a identidade do protagonista com o autor, não só no facto de Ferreira de Castro ter passado a adolescência no interior da Amazónia, mas também por ter trabalhado no Seringal «Paraíso», nas margens do Rio Madeira, e ter vivido em Belém do Pará, tal como Alberto.
Ferreira de Castro afirma que devia este livro à selva, «pelo muito que nela sofri», e «sobretudo aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça.»
Ele encarrega-se de redigir parte dessa crónica, contar os seus dias e os seus trabalhos, registar vidas e experiências, inscrever esperanças e sofrimentos. É que «a luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha – da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável».
Heróis vivos
Ferreira de Castro fala de epopeia, heroicidade e luta contra um ser implacável. Mas será «A Selva» uma epopeia? Bachtin aponta três características fundamentais a este género literário: a epopeia trata do passado épico nacional, tem como fonte a tradição nacional (e não a experiência individual) e a sua acção está separada do presente por uma «distância épica absoluta». Outras características da epopeia prendem-se com o seu pendor histórico-comunitário, situando-se num passado desligado do presente, não remetendo para o presente histórico do receptor. Por outro lado, assume uma entoação heróica (eventos bélicos, confrontações com os elementos atmosféricos, proezas sobrenaturais), as personagens conservam uma ligação estreita com os deuses e desenrola grandes temas, ideias e valores.
«A afirmação de empreendimentos excepcionais, a competição dos deuses com os homens, a representação do destino colectivo de comunidades de alcance nacional [presentes na epopeia], deixam de fazer sentido quando está em cena a personagem individualizada, trivial e muitas vezes problemática que no romance burguês e no realismo crítico se nos apresenta» , lê-se no «Dicionário de Narratologia».
«A Selva» confirma estas palavras? Trata-se de uma obra em que o colectivo é muito marcado. Em primeiro lugar, pela gesta dos seringueiros, os antigos companheiros do autor que ele decidiu cantar. Ou seja, os seringueiros constituem uma personagem colectiva que se vai revelando ao longo da obra a Alberto e ao mesmo tempo ao leitor, que, independentemente de usar ou não o fruto do seu trabalho, desconhece com certeza as suas vidas.
«A Selva» trata de uma comunidade, não nacional, mas uma comunidade que o autor considera que é constituída por heróis, heróis vivos e contemporâneos. O romance afasta-se nestes pontos do conceito de epopeia. Contudo, assume uma certa entoação heróica, integrando confrontos bélicos (referência a combates com os índios) e conflitos com a natureza (a luta com a selva, os animais, as cheias do rio). Proezas sobrenaturais não existem, nem qualquer ligação com o divino, sendo pelo contrário bem marcante a humanidade das personagens, isoladas no seio na floresta, à mercê das regras impostas pelo patrão, Juca Tristão, dono do seringal. Mas exactamente aqui voltamos a tocar nas características da epopeia, pois a obra regista a «busca de pão e de justiça» daqueles homens.