Jantar de bola

Francisco Mota
Para: João Carvalho, eterno estudante do Técnico, guitarrista da Estudantina e editor de um pasquim manipulador pela net, com o único objectivo de dizer que o Chaves ganhou, qualquer que tenha sido o resultado real.

Querido Little John

Noite de domingo. Meados de Setembro. Uma praia da zona de Torres Vedras. Onde jantar? Restaurantes há muitos, mas uma voz amiga informa que todos são maus e que há um que, pelo menos, tem carne boa.
Atravessando a frescura salgada do ar, chegamos ao «sítio». Não é mais do que um café, com nome italiano, mesas, cadeiras e tudo de plástico. A senhora dá-nos uma ementa e anuncia que o prato-estrela «polvo à lagareiro» (?!) já está esgotado. Cumprindo as instruções da amiga, pedimos costeletas de borrego e de porco preto, e uma garrafa de Monsaraz («Desculpe, é da Cooperativa? Não sei, mas vou ver. Olhe parece que está aqui escrito Adega Cooperativa, vê? Bem, não se preocupe»).
Depois destes intróitos, incluido o de saber da mãe do vinho, rapidamente reparamos que o centro da casa não é a cozinha, mas a televisão. SportTV: Vitória de Setúbal – Sporting. Numa mesa ao lado, ou seja poucos centímetros ao lado, um homem come, fuma e debita sobre futebol. Tudo ao mesmo tempo. Ar sério, seguro do que diz, descreve ao seu único ouvinte uma jogada do West Ham contra não sei quem da Inglaterra, em que um médio recebeu a bola, no meio campo e, ao primeiro toque, a enviou para o lateral esquerdo, que imediatamente fez um passe largo para a banda oposta, onde o extremo, ao primeiro toque, centrou e apareceu um interior que meteu golo. O comensal-fumador-comentarista queria que ficasse claro que o fundamental era que tudo tinha sido feito «ao primeiro toque». Percebemos que íamos jantar com um filósofo.
Noutra mesa, quatro adultos (homens) e um miúdo (6 ou 7 anos) seguiam com paixão o menos filosófico jogo. O miúdo insultava o árbitro, os adversários e a mãe de todos eles, com frases claramente aprendidas do pai, que, apesar de tudo, lhe repetia que «essas coisas não se dizem».

Prato do dia

Já com o Sporing a perder recebemos a nossa comida. Fomos comendo, fomos bebendo. Nisto o Setúbal mete outro golo, e o filósofo comenta imperturbável que a execução final tinha sido perfeita, mas que tudo se devia à visão de jogo do tipo que tinha passado a bola: «visão, verticalidade, e profundidade do passe». Ninguém duvidará que a nossa mesa aderiu total e definitivamente as teses do filósofo, que passaram a ser «palavra do Senhor». Anunciou além disso, que um rapazinho do Setúbal iria dar muito que falar, e ninguém se atreveu a dizer nem «piu».
Fomos comendo e percebemos que tínhamos que fazer um comentário gastronómico final sobre o restaurante. Fomos unânimes: Ao Sporting falta-lhe entrosamento entre as linhas, a bola não circula com efectividade em horizontal, e menos ainda em vertical. A transposição médios-atacantes é quase inexistente, não há jogo pelas bandas, e tudo isto terá que ser corrigido rapidamente. O Setúbal, equipa modesta, deu muito boa impressão, parece um conjunto humilde, mas sólido, e não estranharia que fosse uma das surpresas do campeonato.
Sobre o futebol: o borrego e o porco eram realmente de boa qualidade, as batatas das congeladas e o arroz branco «igual a si próprio» (como diria o Alves dos Santos).
À saída, o iodo do mar transmitia sinais de vida e provocava pensamentos: Quantos restaurantes deste país tinham tido na sua ementa de hoje: Prato do Dia – «Vitória de Setúbal – Sporting»? Quantos sítios em que se come decentemente não tiveram clientes por se recusar a ter a televisão nas salas de jantar?
E, o mais preocupante: o futebol é um jogo interessante que até pode chegar a ser belo. Mas porque fazem com que invada todas as parcelas da vida, seja narcótico de tanta gente, factos de amores e ódios idiotas e catalizador de rançosos embandeiramentos nacionalistas? Que culpa tem a bola e os artistas de circo que dela vivem? É preciso olhar cada vez mais para as tribunas presidenciais dos estádios, para ver quem são os interessados económicos e sociais no fanatismo e na idiotização.


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