Nos dias do futebol

Correia da Fonseca
Há uns quantos, é certo que supõem que estes dias têm vindo a ser os de uma complicada crise política, mas é claro que estão enganados: estes são os dias da fase última do Euro 2004. Isso sim. Talvez sempre o fossem, mas com a passagem às meias-finais da equipa-de-todos-nós (que o é agora mais que nunca, pois, como se sabe, Seu Scolari abdicou da dele, que era outra em tempo útil), a coisa tornou-se indesmentível. Por isso, não há-de esta coluna vir falar de programas que tenham a ver com política, mas virá, sim, falar de futebol, isto é, de um ou outro aspecto da presença da TV nos eurofutebóis que têm frequentado as nossos ecrãs. De resto, aprendi há muito e com um grande mestre que a crítica da TV, ou o que com ela porventura se pareça, tem o dever de «estar» onde estão os olhos e a atenção dos telespectadores. Ora, como bem se saberá, a atenção da generalidade dos telespectadores portugueses está na carreira já razoavelmente vitoriosa) escrevo antes do jogo com a Holanda) da equipa portuguesa , e não nas incursões e «driblings» do doutor Santana ou nos remates de longe, mas violentos, da doutora Manuela. Este é assunto para a minoria que se interessa pela vida política do País e na qual, estou certo, se inclui a generalidade dos leitores do «Avante!». Mas bem se sabe que não há incompatibilidade entre ser de esquerda e ter interesse pelo futebol desde que, naturalmente, o interesse não dê em cegueira, febre e loucura. Pelo que, mesmo no «Avante!», não me parece inadequado falar hoje aqui do futebol que tem entrado em nossas casas via TV e deixar os temas mais políticos para quem, noutros lugares do jornal, trata deles incomparavelmente melhor.

O fácil e o tosco

É sabido que temos agora muitos estádios novinhos em folha, ou melhor, em cimento, e ao que consta todos eles lindos, alguns deles sendo mesmo de uma boniteza de pasmar. Ainda bem, é claro: já que ali se investiu tanto dinheiro que fazia falta noutros lados, ao menos que o resultado seja agradável de olhar, contrapartida frágil mas remanescente do facto de ter sido desagradável pagar. Ora, acontece que aunto à invulgar beleza arquitectónica dos nosso estádios, de todos eles ou de alguns deles, o que sei é de ouvir dizer porque ver, nunca vi. E aqui é que bate o ponto, perdoe-se-me a deselegância da expressão. É que, justamente, eu devia ter visto, e como eu milhões de espectadores portugueses cujo olhar esteve nesses estádios graças à TV. A televisão é, digamos que por natureza, o prodigioso meio tecnológico que permite «dar a ver» a quem está longe. Porém, se é certo que as reportagens da RTP, da SIC e da TVI nos «deram a ver» o que se passou nos relvados, sempre se esqueceram de que, não estando nós pessoalmente naqueles lugares, também devia «dar-nos a ver» a moldura envolvente e, com particular atenção a esse aspecto, o tão gabado mérito arquitectónico. Acresce que não foi esta a única lacuna grave das reportagens: dir-se-ia que estas se esqueram da capacidade da TV para nos mostrar pormenores significativos que escapam a quem esteja presente no estádio, sendo essa de resto uma das específicas vantagens da televisão. Já José Nuno Martins, que é homem de televisão, o notou numa notável crónica de rádio apenas inutilmente manchada por alusões mal-humoradas aos grevistas da Carris(ele, que no dia 25 de Abril de 74, fardado e de G-3 em punho, me disse uma das mais lindas frases que nesse dia ouvi e guardo no arquivo da memória); e foram tão justas as suas observações que até posso ter estado aqui a fazer figura de plagiador escrevendo o que escrevi. O caso é que as reportagens televisivas dos jogos do Euro 2004 estiveram longe da serena boa TV, e tinham o dever e a óbvia possibilidade de o serem. Julgo saber (e julgo adivinhar que o José Nuno também o sabe) por que é que isso aconteceu: porque a obsessão comercializante que tomou conta da televisão fez esquecer a todos os que a fazem , embora em grau e intensidade diversas, o precioso instrumento que uma câmara de TV é para mostrar o que o olhar comum não vê, desde uma maravilha arquitectónica a partir do ângulo adequado até à centelha de angústia que por segundos atravessa o rosto crispado de um jogador que falhou uma jogada decisiva. Quer isto dizer que a TV abandonou os seus melhores e específicos trunfos em favor do mais tosco e mais fácil. Quem quiser saber por culpa de quem, investigue os Sumos Sacerdotes do Deus Mercado. Mais uma vez, é claro.


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