Para a canonização de Ronald

Correia da Fonseca
Era o serão de 13 de Junho, dia das eleições para o Parlamento Europeu. Dos quatro canais generalistas e de sinal aberto, a RTP1 e a TVI aplicavam-se a cobrir e comentar os resultados do escrutínio. A SIC não o fazia: coitada, tivera primeiro a transmissão do França-Inglaterra e, após o Jornal da Noite que incluíra informações e comentários acerca das eleições, havia sido o imprescindível «Herman SIC», desta vez com temas rigorosamente adequados à data: as Noivas de Santo António, as Marchas Populares de Lisboa. Mas na SIC-Notícias, embora só acessível aos assinantes da cabo, lá estava o debate alargado acerca do acto eleitoral. Dos quatro canais restava, pois, a «2:», a prometida da «sociedade civil», a que consta estar especialmente vocacionada para programas de carácter cultural e/ou com efeitos culturalizantes. Foi-se a ver e a «2:» estava a transmitir um telefilme. Tinha ele o título do «Ronald Reagan – Retrato de um Presidente» e era a forma que, pelos vistos, a RTP encontrara para, digamos, pôr a sua bandeira a meia-haste pelo falecimento do homem que lançou sobre a União Soviética o epíteto de «O Império do Mal». Ou, dizendo de outra maneira porventura mais adequada: era o modo encontrado pela RTP para reafirmar a sua inteira fidelidade e dedicada devoção aos valores do Patrão, a completa obediência não só às suas directivas expressas ou apenas sugeridas mas também aos desejos não expressos mas que é conveniente adivinhar.

Um notável palmarés

Da biografia de Ronald Reagan já o «Avante!» deu, numa breve notícia publicada na passada semana, os dados principais: enquanto actor, denunciante de colegas no sinistro período de «caça às bruxas» na década de 50; enquanto presidente dos Estados Unidos , líder da aliança para a destruição da URSS, sendo a Tatcher e João Paulo II os seus mais empenhados companheiros de cruzada. Mas a sua presidência teve outros momentos inesquecíveis: a invasão de Granada, a intervenção na Nicarágua através dos chamados «contras», o escândalo da venda de armas ao Irão (episódio este que terá muito a ver com um episódio macabro da história recente de Portugal), apoios indirectos ou semidirectos a intervenções de extrema-direita na América Latina, auxílio total aos taliban que após derrubarem o governo progressista e assassinarem o seu presidente haveriam de implantar no Afeganistão a ditadura fundamentalista que indignou o mundo inteiro. Como se vê, é um palmarés digno de um imperador romano dos piores tempos de Roma. Porém, como facilmente se adivinha, não foi este o perfil de Reagan, que a RTP entendeu divulgar na noite de 13 de Junho. «Ronald Reagan – Retrato de um Presidente» era, bem mais que um retrato supostamente fotográfico, a pintura de um herói americano» no sentido em que esta fórmula se tornou sinónimo de «herói anticomunista». E, a propósito, recordo o que Françoise Giroud escreveu um dia nas colunas do insuspeito «L’Express»: «o anticomunismo é o espelho onde os fascistas se olham e se acham belos».
Registo aqui a transmissão de «Ronald Reagan – Retrato de um Presidente» na noite em que por toda a Europa as TV’s falavam dos resultados das eleições para o PE. Isto é, de um modo ou de outro falavam da Europa e discutiam-na, porque me parece que a escolha daquele documentário foi, só por si, suficientemente eloquente, embora de uma eloquência involuntária, quanto à dependência da TV portuguesa, designadamente da RTP, em relação à Grande América e aos seus produtos de propaganda televisual. Recorde-se que Reagan não chegou a ser presidente da Europa, embora sendo certo que muito funcionou como seu «padrinho» na acepção mafiosa da palavra. Foi, porém, o homem a quem Gorbachov entregou as chaves do poder unipolar sobre todo o planeta, e é claro que isso é mais que suficiente para que, após a sua morte, se passe imediatamente ao processo da sua canonização política e laica, já que a canonização no plano religioso escapa aos muitos poderes e à muita devoção do pontífice que foi seu aliado. Foi Reagan, afinal esse homem de escasso engenho e pensamento primário (mesmo os seus panegiristas afirmam, hoje, que era a sua mulher que mais e melhor pensava por ele), quem abriu ao capitalismo neoliberal a doce perspectiva de que a exploração do planeta se lhe deparava sem mais limites. Tamanho feito merece, sem dúvida, acções de graças mediáticas. Nelas alinhou a televisão pública de Portugal, sem resquícios de pudor, num dia em que era a Europa, não os States, o tema que naturalmente se impunha.


Mais artigos de: Argumentos

Um risco é um risco, é um risco

Olhar uma coisa na coisa: o seu significado íntimocomo forma, aura, função(Clarice Lispector, Um sopro de vida)O desenho é assumido por Ângelo de Sousa como um trabalho de sísifo que se decidiu a escavar aplicada e racionalmente a terra para ir descobrindo a essencialidade das suas estruturas. Trabalho a que se entrega...

Ciência e desporto

Atirei para o ar a ideia. Fi-lo junto de um grupo de amigos, sujeitos de ciência e de cidadania. Estes amigos levam muito a sério as suas actividades como investigadores. O que, por si, já é uma heroicidade no seio de um país como o nosso. Mas intervêm também como cidadãos, lutando sem fadiga, dia após dia, semana após...