O romancista e o doutor
Na passada semana e nos dias em sua volta, José Saramago deu entrevistas na televisão e nelas disse algumas coisas literalmente notáveis a propósito do seu livro agora lançado e de mais alguma coisa. A presença de Saramago na TV sempre foi televisivamente interessante, antes e depois do Nobel, e esta sua vinda justificaria mais uma vez que se lhe referisse uma coluna que se aplica a comentar o que se passa na TV. Contudo, eu estava decidido a não o fazer pelo aqui, já que para outros lugares o tinha feito e seria quase certo tornar-me repetitivo. Aconteceu, porém, que cometi a imprudência de ler a última coluna dominical do dr. Vasco Pulido Valente no “DN” e essa leitura motivou-me extraordinariamente para a escrita. Como é sabido, a coluna do dr. V.P.V. (a referida coluna, e não qualquer outra acerca da qual nem sequer quero saber nada) é inteiramente peculiar: é a única coluna na imprensa que tem cheiro, e nem será de mais dizer que na maior parte das vezes tresanda. Pois desta vez voltou a tresandar mas, curiosamente, ao aroma habitual acrescentavam-se outros cheiros, como se por lá escorresse uma espécie de baba onde se misturassem a inveja enlouquecida, a habitual empáfia elevada ao rubro (rubro branco, naturalmente!) e uma tão primária versão de desonestidade intelectual que só a totalíssima ausência de autocrítica e de um mínimo sentido do ridículo explicam. Sabendo-se que o dr. V.P.V. é conhecido pela sua inteligência verdadeiramente bestial e por uma cultura ciclópica que de resto ele nem tenta esconder, bem pelo contrário, pareceu-me que as falsificações a que desta vez se entrega apelavam para que pelo menos uma ou outra correcção, mesmo partindo elas do sujeito não instruído que sou. E se falo aqui de instrução e de gente não instruída é porque me permito utilizar o vocabulário com que o senhor doutor, já se sabe que instruidíssimo, fulmina muitos ou porventura todos os que recentemente se atreveram a escrever sobre José Saramago e o seu livro.
Algumas entre várias
Tentando desmentir pelo menos algumas das imposturas com que o dr. V.P.V recheou desta vez a sua coluna, direi que, ao contrário do que mais ou menos claramente sugere (como se sabe, os génios não têm o hábito de serem muito claros, e suspeito de que nem a eventual presença de aditivos lhes acrescentam a limpidez), a ficção do voto em branco no romance de Saramago não implica a tentativa de rejeição do “sistema” , palavra que o doutor utiliza na sua coluna decerto por inspiração do dr. Jardim, mas sim o de forma de protesto contra a mistificação democrática que põe os eleitores a julgarem escolher um poder que afinal está num outro lugar. Aliás, porque é exactamente o lugar do poder que está em causa, a presença de Saramago numa lista para o Parlamento Europeu, órgão que só tem funções opinativas ao menos por enquanto, não constitui a contradição que alguns têm apontado entre o escritor e o cidadão candidato. Entretanto, vem V.P.V. dizendo que, segundo Saramagp, o voto em branco poderia corrigir o tal “sistema”. Trata-se de outra discreta impostura: o protesto, o grito de alarme, o uivo se se quiser adoptar esta imagem, não tentam ser correctores, quando muito quereriam ser o prólogo de qualquer coisa que iria porventura começar pela mobilização de consciências despertas para a lucidez. Tudo isto e muito mais foi dito pelo próprio Saramago. explícita ou implicitamente, nas entrevistas dadas na televisão e que, suponho, V.P.V. não viu porque está muito acima de tais coisas, basta-lhe depois opinar sobre elas.
De resto, curiosamente, V.P.V. assume que não leu o “Ensaio sobre a Lucidez” ao escrever que, de Saramago, só leu “O Evangelho”, que compreensivelmente achou “uma coisa primária”. Não é de espantar: acho mesmo que o doutor não tem para ler, tão absorvido estará a ler exclusivamente o que ele próprio escreveu e que é tudo o que vale a pena. Aliás, se se tratasse de personalidade de génio um poucochinho menos fulgurante seria estranho que, tendo lido um só livro de uma obra que conta trinta e tantos títulos, se atrevesse a expelir a sentença de que “Saramago é um escritor pouco interessante e nada original”. Com V.P.V., porém, deve aceitar-se tudo, e creio que nem será preciso explicitar porquê. Resta que nem sempre a um mortal sem instrução sobra paciência para contactar sem náusea com tamanha genialidade, que aquilo é de mais, irra! E, então, sai um protesto indignado, decerto insuficiente e porventura tosco. Como este.
Algumas entre várias
Tentando desmentir pelo menos algumas das imposturas com que o dr. V.P.V recheou desta vez a sua coluna, direi que, ao contrário do que mais ou menos claramente sugere (como se sabe, os génios não têm o hábito de serem muito claros, e suspeito de que nem a eventual presença de aditivos lhes acrescentam a limpidez), a ficção do voto em branco no romance de Saramago não implica a tentativa de rejeição do “sistema” , palavra que o doutor utiliza na sua coluna decerto por inspiração do dr. Jardim, mas sim o de forma de protesto contra a mistificação democrática que põe os eleitores a julgarem escolher um poder que afinal está num outro lugar. Aliás, porque é exactamente o lugar do poder que está em causa, a presença de Saramago numa lista para o Parlamento Europeu, órgão que só tem funções opinativas ao menos por enquanto, não constitui a contradição que alguns têm apontado entre o escritor e o cidadão candidato. Entretanto, vem V.P.V. dizendo que, segundo Saramagp, o voto em branco poderia corrigir o tal “sistema”. Trata-se de outra discreta impostura: o protesto, o grito de alarme, o uivo se se quiser adoptar esta imagem, não tentam ser correctores, quando muito quereriam ser o prólogo de qualquer coisa que iria porventura começar pela mobilização de consciências despertas para a lucidez. Tudo isto e muito mais foi dito pelo próprio Saramago. explícita ou implicitamente, nas entrevistas dadas na televisão e que, suponho, V.P.V. não viu porque está muito acima de tais coisas, basta-lhe depois opinar sobre elas.
De resto, curiosamente, V.P.V. assume que não leu o “Ensaio sobre a Lucidez” ao escrever que, de Saramago, só leu “O Evangelho”, que compreensivelmente achou “uma coisa primária”. Não é de espantar: acho mesmo que o doutor não tem para ler, tão absorvido estará a ler exclusivamente o que ele próprio escreveu e que é tudo o que vale a pena. Aliás, se se tratasse de personalidade de génio um poucochinho menos fulgurante seria estranho que, tendo lido um só livro de uma obra que conta trinta e tantos títulos, se atrevesse a expelir a sentença de que “Saramago é um escritor pouco interessante e nada original”. Com V.P.V., porém, deve aceitar-se tudo, e creio que nem será preciso explicitar porquê. Resta que nem sempre a um mortal sem instrução sobra paciência para contactar sem náusea com tamanha genialidade, que aquilo é de mais, irra! E, então, sai um protesto indignado, decerto insuficiente e porventura tosco. Como este.