Para não falar de Espanha
Os acontecimentos havidos em Espanha na segunda metade da passada semana e a extensa cobertura delas feita, e muito justificadamente, pelos canais portugueses, resultaram em que desejasse não falar delas aqui. Não por não ter sido essa cobertura a grande tónica das programações da RTP, da SIC e da TVI, na área informativa, pois é certo que o foram. Mas o seu fastio pelo tema talvez, quem sabe?, tenha radicado na vontade de não me parecer, nem de muito longe e à minha minúscula escala, com o senhor primeiro-ministro que, como se sabe, andou metido na política interna do país vizinho e passeou-se não apenas a si próprio mas também ao nome de Portugal na campanha eleitoral do PP do senhor Aznar. Aliás, esta aparente paixão do senhor primeiro-ministro português pelos PP’s ibéricos, tendo já dado mau resultado de Vilar Formoso para cá, ameaçava dar resultado idêntico de Vilar Formoso para lá. Como coda final e inutilmente arriscada ainda se viu na TV o dr. Durão a afirmar que sim senhores, os atentados de Madrid seriam coisa da ETA. Neste ponto, o dr. José Manuel pareceu querer transferir-se da condição de aliado e «compagnon de route» do dr. José Maria para a de seu irmão-gémeo. A coisa deu para o torto, e tudo quanto o senhor primeiro-ministro português pode dizer a si próprio à laia de consolo é que fica para a outra vez; cabendo-nos a nós, que somos portugueses sem a vocação de atrelados, esperar que não haja «outra vez» com aquele José Maria ou outro qualquer outro que com ele se pareça.
Decidi, pois, não vir falar aqui da Espanha daqueles dias nem da cobertura deles nas estações portuguesas de TV. Contudo, é claro que as imagens de morte e desespero não me deixaram indiferente, e talvez por isso dei conta de mim a revolver as muitas dezenas de videocassetes que se amontoam um pouco por todos os cantos da minha casa, a buscar algumas que foram gravadas há cerca de um ano ou ainda há mais tempo, a metê-las no videogravador para voltar a vê-las. Eram reportagens várias, sobretudo norte-americanas da CBS e britânicas da BBC, creio que também uma de produção francesa, que eu guardava «para memória futura», para usar aqui uma fórmula que por bem diferentes motivos vem sendo muito utilizada. Não porque eu próprio corresse o risco de algum dia esquecer as imagens que aquelas cassetes guardavam, mas porque há outras memórias mais frágeis que a minha sobretudo quando se trata de certos assuntos, memórias mais vulneráveis ao desgaste produzido não pelo tempo mas pelos nevoeiros tóxicos, pelas imposturas sem princípios mas com fins, que sobre elas são lançadas. E ali fiquei durante algumas horas a rever imagens que são documentos de origem insuspeita, a voltar a ouvir jornalistas que prestavam informações que não se conformavam com as teses oficias e convenientes. Isto é: ali fiquei a revisitar a história recente revisitando fontes honestas, e porque honestas, seguras.
E vi então coisas terríveis. Vi imagens de crianças, mortas umas, mutiladas outras, em consequência de bombardeamentos que afinal foram muitíssimo menos cirúrgicos do que se havia anunciado. Vi mães em desespero, uma delas ainda apertando ao peito o filho que aparentemente ainda julgava vivo. Vi um velho de lágrimas a escorrer pelas longas barbas, especado perante a casa destruída que se transformara em túmulo de toda a sua família. Vi cadáveres amontoados, vestes brancas tornadas vermelhas pelo sangue que transbordara dos corpos que mal cobriam agora. E ao passar outras videocassetes que não registavam tão apocalípticos efeitos de destruição, vi imagens de outras crianças que morriam em hospitais não em consequência directa das explosões mas porque lhes haviam faltado medicamentos, ou mais modestamente o leite, que lhes teriam permitido viver. E então não era a guerra, não, ou era uma outra forma dela. Era seguramente uma outra forma de matar, e de matar inocentes, crianças mas também adultos. É certo que uns e outros não se pareciam com a gente com quem nos cruzamos nas ruas de Lisboa, de Paris ou de Roma: tinham um ar mais pobre, muitos dos homens usavam turbante, as mulheres usavam lenços. Mas tudo indica que eram pessoas, que aquelas crianças eram seus filhos e netos. E que o líquido que lhes escorria pelas faces ou pelas barbas era «água (quase tudo) e cloreto de sódio», como um dia nos explicou António Gedeão.
Acabado o visionamento retrospectivo, guardei as videocassetes nas gavetas e prateleiras, as imagens na memória. Para nunca esquecer. E reafirmei perante mim mesmo o propósito de não falar no que aconteceu em Madrid entre quinta-feira e domingo passados.
Decidi, pois, não vir falar aqui da Espanha daqueles dias nem da cobertura deles nas estações portuguesas de TV. Contudo, é claro que as imagens de morte e desespero não me deixaram indiferente, e talvez por isso dei conta de mim a revolver as muitas dezenas de videocassetes que se amontoam um pouco por todos os cantos da minha casa, a buscar algumas que foram gravadas há cerca de um ano ou ainda há mais tempo, a metê-las no videogravador para voltar a vê-las. Eram reportagens várias, sobretudo norte-americanas da CBS e britânicas da BBC, creio que também uma de produção francesa, que eu guardava «para memória futura», para usar aqui uma fórmula que por bem diferentes motivos vem sendo muito utilizada. Não porque eu próprio corresse o risco de algum dia esquecer as imagens que aquelas cassetes guardavam, mas porque há outras memórias mais frágeis que a minha sobretudo quando se trata de certos assuntos, memórias mais vulneráveis ao desgaste produzido não pelo tempo mas pelos nevoeiros tóxicos, pelas imposturas sem princípios mas com fins, que sobre elas são lançadas. E ali fiquei durante algumas horas a rever imagens que são documentos de origem insuspeita, a voltar a ouvir jornalistas que prestavam informações que não se conformavam com as teses oficias e convenientes. Isto é: ali fiquei a revisitar a história recente revisitando fontes honestas, e porque honestas, seguras.
E vi então coisas terríveis. Vi imagens de crianças, mortas umas, mutiladas outras, em consequência de bombardeamentos que afinal foram muitíssimo menos cirúrgicos do que se havia anunciado. Vi mães em desespero, uma delas ainda apertando ao peito o filho que aparentemente ainda julgava vivo. Vi um velho de lágrimas a escorrer pelas longas barbas, especado perante a casa destruída que se transformara em túmulo de toda a sua família. Vi cadáveres amontoados, vestes brancas tornadas vermelhas pelo sangue que transbordara dos corpos que mal cobriam agora. E ao passar outras videocassetes que não registavam tão apocalípticos efeitos de destruição, vi imagens de outras crianças que morriam em hospitais não em consequência directa das explosões mas porque lhes haviam faltado medicamentos, ou mais modestamente o leite, que lhes teriam permitido viver. E então não era a guerra, não, ou era uma outra forma dela. Era seguramente uma outra forma de matar, e de matar inocentes, crianças mas também adultos. É certo que uns e outros não se pareciam com a gente com quem nos cruzamos nas ruas de Lisboa, de Paris ou de Roma: tinham um ar mais pobre, muitos dos homens usavam turbante, as mulheres usavam lenços. Mas tudo indica que eram pessoas, que aquelas crianças eram seus filhos e netos. E que o líquido que lhes escorria pelas faces ou pelas barbas era «água (quase tudo) e cloreto de sódio», como um dia nos explicou António Gedeão.
Acabado o visionamento retrospectivo, guardei as videocassetes nas gavetas e prateleiras, as imagens na memória. Para nunca esquecer. E reafirmei perante mim mesmo o propósito de não falar no que aconteceu em Madrid entre quinta-feira e domingo passados.