Comentário

Desmistificações

Pedro Guerreiro
Lendo alguns jornais recentes, constatei que, não ingenuamente, continua a ser veiculada a mistificação de que o carácter não democrático da União Europeia (UE) resulta essencialmente da intervenção dos governos de cada país no processo de decisão, sobrepondo-se ao papel do Parlamento Europeu, contradição que, ilusoriamente, seria resolvida com a criação de uma «segunda câmara» parlamentar ao nível da UE.
Face a tal tese mistificatória, será necessário salientar que, quanto às questões fundamentais, a contradição essencial não decorre das diferenças entre as posições dos governos dos países da UE, da Comissão Europeia ou do Parlamento Europeu (PE), pelo simples facto de que as forças políticas que dominam as instituições mais supranacionais da UE (PE e Comissão) são as mesmíssimas forças que têm vindo a dominar os governos dos diferentes países, ou seja, a direita e a social-democracia. A criação de uma denominada «segunda câmara» em nada alteraria esta realidade.
Aliás, em certos casos, são as instituições mais supranacionais da UE (PE e Comissão) que tomam a dianteira na defesa de projectos profundamente negativos. O exemplo da dita «constituição europeia», pela sua grande importância, é especialmente significativo. PE e Comissão integram o conjunto de forças (das quais se destacam os governos francês e alemão) e interesses económicos (de que as confederações do grande patronato na Europa são expressão), que querem ver aprovada e ratificada o mais rapidamente possível a «constituição europeia» e o seu projecto federalista, neoliberal e militarista, com primado sobre as Constituições nacionais.
Se a decisão passasse apenas pelo PE e pela Comissão, há muito que este inaceitável projecto estaria aprovado. Foram as contradições em torno do controlo do processo de decisão, nomeadamente entre as grandes potências e os países que aspiram a sê-lo e, sublinhe-se, o poder e possibilidade de veto no Conselho (órgão onde estão representados todos os governos), que conduziram, para já, ao bloqueamento deste perigoso projecto. «Constituição europeia» que PS, PSD e CDS-PP apoiam e que o Bloco de Esquerda acompanha quanto ao essencial das teses federalistas.
A contradição maior e o carácter não democrático da UE têm a sua raiz num projecto que, centralizando o poder em instituições supranacionais dominadas pelas grandes potências e cujas políticas servem os interesses dos grandes grupos económicos, está em conflito aberto com os interesses e necessidades dos trabalhadores e a soberania dos povos dos diferentes países que a compõem.
A resposta adequada ao carácter não democrático da UE - ao domínio das grandes potências e à imposição dos interesses dos grandes grupos económicos - não passa por criar mais instituições supranacionais onde, de uma ou doutra forma, as grandes potências sempre irão prevalecer, afirmando a sua soberania pela destruição da soberania dos restantes países (as «fronteiras acabaram» mas só para alguns, para as grandes potências elas nunca deixaram de existir, veja-se o exemplo da não aplicação do processo de advertência/sanção inscrito no Pacto de Estabilidade à França e Alemanha).
A resposta necessária a um processo de integração que procura submeter e condicionar a soberania e as potencialidades de desenvolvimento dos países ao domínio e às prioridades das grandes potências e do grande capital - e que conta em Portugal com a participação servil do Governo PSD/CDS-PP e o apoio do PS - passa, assim, pela criação de um modelo de cooperação entre estados soberanos e iguais, onde o interesse comum seja a soma do interesse de todos e não seja possível a tomada de decisões que prejudiquem ou interfiram com os interesses fundamentais de cada país e dos respectivos povos (garantindo-se o direito de veto ou a não aplicabilidade da decisão a um país que as rejeitem) e onde os parlamentos nacionais reassumam o seu papel fundamental.
Esta outra Europa, como temos salientado, não resultará do mero funcionamento de instituições dominadas pelas forças que têm dirigido a actual integração europeia, mas será fruto da conjugação das lutas dos trabalhadores e dos povos. A necessária expressão europeia e internacional das lutas adquirirá uma dimensão e um significado tanto maiores quanto mais elevado for o seu grau de enraizamento e organização ao nível de cada país, espaço e dimensão decisivos da luta de classes e da afirmação da soberania dos povos.


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