Ilegalidades dão milhões aos patrões e ao Estado

As inspecções automóveis e a insegurança nas estradas

Luís Gomes
A condição primeira para a conferência de imprensa do passado dia 24, na sede da Festru, foi a imposição do anonimato, uma vez que a represália patronal ao dar a cara, seria o despedimento. Os inspectores de veículos exigem o direito à contratação colectiva para regular uma situação que põe em perigo a segurança rodoviária.
A inexistência de qualquer contrato colectivo, associada à precariedade, são factores mais do que suficientes para justificar que os inspectores estejam condicionados a interesses patronais que desvirtuam os verdadeiros resultados das inspecções.
O motivo da convocatória da Festru/CGTP-IN, deveu-se a uma notícia de segunda-feira anterior, onde se dava conta de possíveis irregularidades nas inspecções automóveis. Foram ouvidas todas as entidades com responsabilidades, menos os trabalhadores por conta de outrém. Dava-se voz ao presidente da Associação Nacional dos Centros de Inspecção Automóvel, ANCIA, Paulo Areal, que classificou os inspectores de «implacáveis», e onde se salientava que cerca de um milhão de veículos não estava em condições para circular.
Os trabalhadores fazem notar que Paulo Areal é dono de um centro de inspecções onde o normal, também ali, é a existência de pressões das entidades patronais, no sentido de passar licenças a veículos sem condições, sob pena de serem despedidos.
São as frotas de grandes empresas que beneficiam mais com este tipo de «facilitismos», na maioria de pesados de mercadorias e de passageiros. Para os inspectores, a maior parte dos pesados não estão em condições de circular na estrada. As inspecções são mais caras do que as efectuadas a ligeiros e é aqui, segundo os inspectores, que elas apresentam menor rigor.
A notícia que suscitou as denúncias revelava ainda terem sido levantados autos a inspectores, levando a Festru a acusar a Direcção-Geral de Viação de querer apenas responsabilizar os trabalhadores, omitindo a precariedade, a falta de um contrato colectivo e nunca autuando, consequentemente, a entidade patronal que assim não se vê na obrigação de fazer cumprir a lei.

Entre a espada e a parede

Os inspectores dizem estar sujeitos às determinações das entidades patronais. Por outro lado, se não fazem o que a lei determina, são depois fiscalizados pelos inspectores da DGV, sujeitos a coimas que podem ir dos 500 euros até à suspensão da licença entre dois meses e dois anos, ou ser despedidos com justa causa.
Através de documentação a que o Avante! teve acesso, fica-se a saber que o próprio Agrupamento Nacional de Inspecções Automóveis, ANIVAP, uma das mais representativas associações patronais do ramo, tem como orientações para os seus centros de inspecção, objectivos que primam mais pela quantidade de inspecções realizadas do que pela sua qualidade.
Pressionados dos dois lados, a situação revela-se-lhes «altamente preocupante», não só para eles como para a segurança nas estradas portuguesas, considera a Festru.
A federação fez notar ainda que o Governo, que deveria dar o exemplo, é conivente com os patrões dos centros, uma vez que quantos mais carros fizerem a inspecção, maior é a receita também para os cofres do Estado. Por este motivo, a Festru considera que os verdadeiros responsáveis pelas irregularidades cometidas são o Governo e as entidades patronais, em vez dos trabalhadores do sector que nada podem fazer perante as pressões a que estão sujeitos.

Urge um contrato colectivo

Os trabalhadores exigem mais qualidade nas inspecções através do instrumento fundamental para uma verdadeira regulação do sector, a contratação colectiva.
Para eles, só um CCT pode impor regras ao sector de forma que se respeitem direitos e deveres. Há dez anos que a federação propõe ao Governo a criação de um CCT, proposta que tem sido recusada pela ANCIA, associação patronal, que diz não ter poderes estatutários para o elaborar. No entanto, o Diário da República de 20 de Março é peremptório ao registar que a ANCIA recebeu da DGV no ano passado, 117 694.83 euros, montante que, para a Festru, deveria servir para essa elaboração. A não existência de contratação colectiva num sector que conta com cerca de 170 empresas, faz com que cada uma efectue a contratação da forma que lhe convém. Até hoje, nunca houve, nem por parte da DGV, nem do Governo, vontade de implementar um CCT.
Também a nível salarial, reflecte-se a ausência do contrato, com variações que se situam entre os cem e os duzentos contos/mês, na moeda antiga.

Vale tudo no sector

Certo é que esta desregulação gera receitas na ordem dos vinte milhões de contos, distribuídos entre a DGV e os centros.
Em 2003, a DGV realizou cerca de 700 acções de fiscalização num total de 4 milhões de inspecções realizadas, ficando muito aquém do que seria desejável em termos de eficácia fiscalizadora.
Dos vinte milhões de contos, a DGV recebe directamente os cinco por cento estipulados por lei - cerca de um milhão -, embora não tenha condições para fiscalizar.
A DGV foi também acusada de não investigar o número de inspecções por inspector. Em oito horas de trabalho é humanamente impossível realizarem-se 40 inspecções, uma vez que, segundo a lei, uma inspecção em média a um ligeiro deve demorar entre 15 a 20 minutos e a um pesado, entre 30 a 40 minutos. No entanto, em muitos registos da DGV, pode-se constatar esse número de inspecções diárias.
Os quatro inspectores presentes na conferência de imprensa– devidamente credenciados – estão todos com contratos a termo. Ao todo são cerca de 1500 inspectores credenciados, 900 dos quais em actividade, na esmagadora maioria com contratos precários.
Muitos dos que não estão em actividade, foram despedidos por terem levantado a voz contra situações de ilegalidade.
Quando se dá um despedimento, a informação é passada para os outros centros, tornando muito difícil encontrar posterior colocação.
O horário semanal é de cerca de 60 horas, mais 20 do que seria normal.
Estão também no activo mulheres inspectoras que são fortemente discriminadas, auferindo menos 30 a 40 contos em relação aos homens, embora realizem as mesmas funções.
Outra entidade com responsabilidades no sector é o IPQ, o Instituto Português de Qualidade, que efectua, através de auditores, creditações anuais aos centros. Os inspectores dizem que o sistema é facilmente manipulado pelos directores dos centros, e acusam os inspectores do IPQ, de falta de conhecimentos técnicos de mecânica para avaliar as situações.

Inconstitucionalidades

Os inspectores de veículos deveriam ter, por lei e anualmente, um certo número de horas de formação mas, na realidade, isso não acontece. A formação é feita à medida dos grupos económicos do sector que aconselham os trabalhadores a reger-se pelas leis da casa – como no caso da ANIVAP - e não pelas leis que regulamentam o sector.
As consequências são despedimentos ao fim de seis meses ou um ano, com os inspectores forçados a aprovar veículos sem segurança que depois aparecem nos noticiários em acidentes de viação atribuídos aos condutores ou às condições climatéricas, quando muitas das vezes o verdadeiro motivo reside no facto de o veículo não ter condições para circular.
Para Abril, está prevista a entrada em vigor de um decreto-lei, o 258, «feito nas costas dos trabalhadores», afirmou o coordenador da Festru, uma vez que o sindicato não foi sequer ouvido nestas matérias, estando por isso, ferido de inconstitucionalidade.
Este decreto pretende que os inspectores passem a ter completo o 12.º ano em matemática e física, mais a carta de articulados, que antes era dispensável, ficando divididos em várias categorias. Até agora, apenas era exigido o 12.º ano, independentemente da área.
A Festru exige poder participar na feitura da legislação, e solicitou uma reunião no Ministério do Trabalho para discutir o contrato colectivo, e outra com o ministro da Administração Interna, para discutir o DL 550/99, onde se refere a sujeição dos inspectores a coimas. Trata-se, para a Festru, de uma situação «surreal», já que as coimas deviam ser antes aplicadas aos patrões dos centros. Entretanto, pressionado pela conferência de imprensa, o Ministério da Administração Interna convocou a Festru para uma audiência, a ter lugar no próximo dia 12.

A falta de segurança dá lucro

O sector vive uma concorrência febril, orientada pelo «fechar de olhos» a irregularidades. Uma vez que o preço das inspecções está devidamente regulamentado, a concorrência efectua-se através da angariação de clientes e da quantidade de inspecções efectuadas.
Segundo os inspectores, há agrupamentos que trabalham por objectivos quantitativos e plafonamentos limitativos da veracidade dos exames.
Numa circular interna da autoria da ANIVAP – grupo detentor de 38 centros de inspecção –, um dos objectivos apresentado é o limite de um por cento por cada cem inspecções de deficiências tipo 3, consideradas as mais graves em termos de segurança. Ou seja, o patronato exige que apenas uma em cada cem inspecções detecte anomalias deste tipo. Caso se detecte mais do que um por cento, o objectivo deixa de ser cumprido e a responsabilidade é atribuída aos inspectores, pondo em causa a veracidade das inspecções e a segurança rodoviária. As deficiências de tipo 3 prendem-se com fugas de óleo nos travões ou de combustível.
Os mesmos objectivos referem que a taxa de reprovação deve ser superior a vinte por cento. A DGV, quando fiscaliza, pede ao centro a taxa de reprovação na altura em que dá início à fiscalização e também no final da fiscalização. Em muitas situações, essa taxa, de um momento para o outro oscila para o dobro, provando que algo de errado se passa.
Um terceiro objectivo é um limite imposto de 4500 inspecções/ano por inspector, valor que determina, de acordo com estas regras da ANIVAP, a produtividade. Os inspectores consideram que a prioridade deveria ser antes dada à qualidade das inspecções em vez da quantidade.
Segundo os inspectores, estes objectivos não são do conhecimento da DGV.


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