Trabalho Científico e Capital em Conflito (*)
Na cimeira de Lisboa de Março de 2000, a UE anunciou uma estratégia que, baseada no conhecimento, tornaria a UE na mais competitiva e dinâmica economia do mundo até ao ano 2010. Dir-se-ia que se encenava uma competição transatlântica, mas não era assim. O que de facto se propunha era a agenda das corporações transnacionais para uma nova, mas já velha, ordem mundial. A Ciência e a Tecnologia e a qualificação avançada da força de trabalho eram chamadas a sustentar essa estratégia. O que todavia não era em nome nem do bem comum dos trabalhadores europeus nem das nações do mundo. Era tão só mais um e ousado passo em frente no cumprimento dos objectivos da agenda do capital transnacional
As associações empresariais promovem activamente os seus interesses na União Europeia. Enquanto na década de 1990 o poder de decisão se localizava nas associações nacionais dos estados membros, actualmente, as grandes corporações transnacionais ganharam maior influência. Esta transformação não é geralmente perceptível, mas deve ser evidenciada como um sintoma da globalização do capital. Mesmo as associações empresariais de âmbito europeu vão sendo ultrapassadas em influência política pelas grandes multinacionais.
Desde a constituição da ERT - Mesa Redonda de Empresários Europeus - em 1983, do comité europeu da Câmara Americana de Comércio – AmCham – em 1985 e a inauguração do Diálogo Transatlântico de Negócios – TABD – em 1995, todas elas consistindo em parcerias directas de corporações, as novas organizações vieram a exercer influência progressivamente maior em Bruxelas como activas procuradoras das corporações que representam. As duas últimas representam ou incluem multinacionais sediadas nos EUA e testemunham a crescente interpenetração do capital através do Atlântico.
Este processo reflecte uma tendência mais geral em que autoridades regulamentadoras supranacionais, como é a Comissão Europeia, actuam solidariamente com as corporações transnacionais no sentido de debilitarem a acção regulamentadora dos governos nacionais e de permitirem as corporações regulamentarem-se a si próprias. Esta estratégia é veiculada por governantes, funcionários e tecnocratas dos dois lados do Atlântico que procuram lavar o cérebro da opinião pública com sua retórica neoliberal, assumida ou sub-reptícia, construída sobre neologismos tais como: «responsabilidade social das empresas», «sociedade civil» e «stakeholders», com «diálogo» à mistura.
Contabilizemos os grupos de pressão que actuam junto da Comissão Europeia. Existem cerca de 20 mil grupos de interesse, incluindo todas as associações nacionais e as organizações europeias de associação directa, que participam na vida política da UE. Dois terços desses grupos representam interesses do mundo do negócio. Cerca de 10 mil agentes de interesses («lobbyists») trabalham em associações comerciais da UE a nível da União, e vários milhares mais trabalham para associações nacionais ou para corporações que mantêm os seus próprios escritórios em Bruxelas. A soma final ascende a cinco agentes de negócios por cada funcionário da Comissão Europeia!
Ligações próximas entre o mundo universitário e o mundo do negócio também se encontram na comunidade de agentes de interesses em Bruxelas. As associações empresariais fazem bom uso de universitários cuja investigação é financiada por corporações, ou que se movem de uma universidade para uma administração, ou que são contratados como consultores ou agentes de interesses de associações empresariais. Alguns académicos estão satisfeitos por terem a sua consultoria ou investigação financiadas por interesses empresariais, mas muitos são a tal obrigados por não obterem fontes de financiamento alternativas. A situação descrita sugere que os universitários envolvidos nas referidas redes informais universidade/empresa exercem de facto uma função chave de articulação e de legitimação em nome do grande capital.
O processo de globalização reforçou o poder das corporações transnacionais quer sobre os governos quer sobre os interesses sócio-económicos em geral. A influência dos grupos empresariais europeus e transatlânticos está em ascendente e franco conflito com os interesses do mundo do trabalho e demais interesses sociais. E todavia atingiram essa influência com o apoio dos governos nacionais, contra o desejo ou mesmo o conhecimento dos respectivos cidadãos. Um bom número de trabalhadores científicos, de livre vontade ou contrariados, contribuíram e foram cúmplices nisso.
Propriedade intelectual ou apropriação do conhecimento
A finalidade do registo de patentes transformou-se por completo desde que pela primeira vez foi concebido para o bem comum e como incentivo aos inventores. Gradualmente tornou-se objecto de apropriação pelo capital. A propriedade intelectual que pode ser vendida ou cedida sob licença a terceiros é património real ou potencial que pode gerar receitas aliciantes. Em certos sectores industriais, como sejam biotecnologia, produtos farmacêuticos ou telecomunicações, o licenciamento de propriedade intelectual tornou-se numa preocupação maior.
Gabinetes de patentes abrem por todo o lado, a UE promove o Escritório Europeu de Patentes, e o registo e o comércio de direitos de propriedade intelectual tornou-se em negócio graúdo. O mais importante não é o conteúdo, a sua originalidade e a sua viabilidade técnica; não, o que importa sobretudo é possuir um título de registo que possa ser objecto de negócio.
Uma empresa que possua uma carteira de pelo menos 450 patentes e despenda em Investigação e Desenvolvimento (I&D) pelo menos 50 milhões de dólares por ano - e há nos EUA e na UE várias centenas de corporações que ultrapassam estes limiares – detém propriedade intelectual suficiente para dela fazer uma boa linha de negócio com reduzido investimento de capital.
Depois de identificados os títulos comerciáveis e avaliado o seu potencial valor, uma rede de parceiros ou agentes (intellectual-property brokers, consolidators, business builders) entra em acção e reúne esforços no sentido de concretizar negócios de licenciamento de direitos e de troca de activos com outras empresas. Trata-se de um nicho de negócios, em crescimento acelerado, ocupado por pequenas empresas cujo volume de receitas anuais atingiu já o nível de 100 mil milhões de dólares nos EUA.
Empresas de sucesso adoptam programas de propriedade intelectual, a par da I&D realizada intramuros e de fusões e aquisições de activos. Explorar intensamente a propriedade intelectual é certamente difícil e exige especialização científica em profundidade e extensão, de que a maioria das empresas não dispõe internamente e poderá não ter meios para adquirir no exterior. Esta é uma promissora oportunidade emergente para as grandes corporações e as pequenas firmas especializadas partilharem.
Vejamos o que a ERT dizia, recordando que as suas opiniões são ordens para a Comissão Europeia: «Os principais obstáculos no percurso que conduz da invenção à inovação são a burocracia e os sistemas administrativos que mostram completa insensibilidade para com as necessidades da I&D, em particular no que toca a direitos de autor e ao tempo para a exploração comercial. As patentes são dolorosamente lentas de registar e imensamente caras em traduzir e manter. Uma grande transnacional europeia, com mais de mil pedidos de patente por ano, estima que só os custos anuais de tradução ascendem a 20 ou 30 milhões de euros. Um Mercado Comum na verdadeira acepção deve ter uma patente europeia única e funcional». As grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos e as suas despesas são sempre supérfluas.
Mas é verdade que, em termos de desempenho tecnológico global, durante a última década o peso relativo da Europa no pedido de registo de patentes no Escritório Europeu de Patentes (EPO) e na atribuição de patentes no Escritório Norte-americano de Patentes e Marcas (USPTO) declinou. E essa situação é pior no que toca a patentes em tecnologias de ponta. Mas o que estes factos reflectem é, sobretudo, a circunstância que, globalmente, a UE despende bastante menos em I&D (1,94% do PIB em 2000) do que os EUA (2,80%) e o Japão (2,98%). Acresce que o «lapso de investimento» se tem alargado rapidamente desde meados da década de 1990, principalmente em resultado da reduzida contribuição das empresas, que na Europa representam pouco mais de metade das fontes de financiamento da I&D, em contraste com mais de dois terços quer nos EUA quer no Japão. Quer dizer: não só as grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos, como encontram sempre em terceiros as «culpas» para o seu menor desempenho.
A propósito de propriedade intelectual, constatamos como trabalhadores científicos podem ganhar a vida a extrair maiores rendimentos para os proprietários das corporações, a partir da exploração dos resultados científicos e técnicos que os seus colegas de ofício alcançaram algures. Uma vez mais se constata como a propriedade privada coloca o homem em confronto com o homem.
Ética e responsabilidade social
Abunda a invocação de direitos sobre o conhecimento na agora denominada «Nova Economia do Conhecimento». Médicos afirmam «possuir» procedimentos médicos que anteriormente eram partilhados entre colegas. Companhias de software afirmam o monopólio sobre blocos constituintes de códigos de programação. Companhias farmacêuticas reclamam direitos exclusivos sobre produtos químicos extraídos de plantas, insectos e microorganismos. A cartografia do genoma humano realizado através do human genome project é «propriedade privada». Estes desenvolvimentos comprovam que não há qualquer propósito cívico na dita «Economia do Conhecimento» que regule a difusão de informação e o acesso ao conhecimento e às suas aplicações, pelo contrário. O objectivo tornou-se puro lucro a cada vez mais breve prazo.
Afirmações de propriedade privada sobre largos territórios do conhecimento - ou mera informação - proliferam agora porque em todos os domínios de alta tecnologia – na medicina, na biotecnologia, nas indústrias agro-alimentar, de informação e de software – os activos das corporações em «conhecimento» sobem em preço em comparação com activos e recursos mais tradicionais. Testemunhamos uma transição profunda para uma nova era em que activos baseados em «conhecimento» parecem desempenhar um papel de estímulo ao «crescimento económico». Porém esse papel é parte real e parte virtual, e como tal está sujeito ao jogo especulativo, principalmente quando, como agora, o capital económico produtivo é comandado por um mercado de capital financeiro – a «Nova Economia».
A agressividade da actual corrida em direcção ao patenteamento sem fronteiras evidencia-se superlativamente na alienação pelo melhor preço de activos anteriormente pertencentes ao domínio público. Por esta via se alienam instituições públicas e património comum a favor da expansão da propriedade privada. Esta erosão dos direitos comuns ameaça sobretudo os países em desenvolvimento, onde reside a maior parcela tanto de população como de recursos naturais. E ameaça também o próprio edifício da democracia tal como hoje existe, o exercício de direitos políticos e a equidade no acesso a bens económicos. Com a revolução científica e técnica em curso, a relação entre as garantias e os direitos democráticos conquistados com a formação social e o modo de produção capitalista é crescentemente contraditória.
As patentes oferecem à indústria enormes incentivos para explorar as aplicações tecnológicas até limites morais e para além deles, e tão de pressa quanto possível. Mas a favor de quem revertem os potenciais benefícios? Quem colherá as receitas geradas pela reprodução do capital? Que papel activo será comandado pelos trabalhadores científicos que fazem as descobertas, desenvolvem as tecnologias e contribuem para decidir as respectivas aplicações?
Proclamações de propriedade e secretismo no trabalho de desenvolvimento tecnológico, ambos inibem a franca discussão das matérias científicas e, a médio prazo, são ameaças que erodem o curso do progresso científico geral. Trabalhadores científicos quer publicando as suas pesquisas quer proibidos de o fazer por força de contrato, são expropriados dos frutos do seu trabalho, de um modo ou do outro.
A insustentabilidade das políticas educativa e de investigação científica
O utilitarismo das presentes políticas de Educação e de Investigação Científica serve directamente os interesses do capital e contraria o bem social dos povos. Essas políticas não só alimentam os lucros das corporações a expensas dos padrões de vida das nações. Elas, mais cedo do que mais tarde, não são sustentáveis e conduzem a um colapso económico e social. Pode soar apocalíptico mas poderá tornar-se realidade.
No que respeita à Educação, o desempenho dos sistemas educativos está em degradação há décadas, em consequência dessa política utilitarista e da redução de recursos públicos a ela afectados. Nos EUA, porque o sistema educativo é incapaz de formar os necessários licenciados, a maior parte da força de trabalho afectada à Investigação Científica e Desenvolvimento Experimental (I&D) vem do estrangeiro. Na Europa observa-se um curso semelhante de políticas e de acontecimentos. A gravidade da situação só é atenuada (também) pelo recurso à emigração, incluindo a «importação de cérebros» oriundos de países populosos da Ásia e da América Latina. A existência de algumas universidades de grande qualidade nos EUA e na UE não altera o essencial desta questão, pois que o real problema está a montante, nos ensinos básico e secundário, também estes tornados incapazes de formar, em qualidade e quantidade, os jovens necessários para o preenchimento das melhores escolas a nível superior.
A agravar esse quadro, o financiamento da I&D na Europa e nos EUA não tem acompanhado o crescimento do número de trabalhadores científicos, de forma que muitos jovens investigadores não conseguem encontrar trabalho permanente, não se candidatam a projectos por não terem base institucional que suporte tais candidaturas e vão abandonando a profissão, que anteriormente era encarada numa perspectiva de carreira para a vida. A taxa de desemprego entre trabalhadores científicos doutorados está actualmente entre as mais elevadas nos próprios EUA e vem crescendo; e são os investigadores mais jovens que são mais atingidos. Há uma geração atrás, as colocações em pós-doutoramento eram breves períodos de experiência que virtualmente garantiam um posto de trabalho permanente numa faculdade. Agora, pelo contrário, muitos jovens investigadores passam de pós-doutoramento em pós-doutoramento, como trabalhador migrante da economia de alta tecnologia contemporânea. Os discursos oficiais a favor da flexibilização do trabalho e, em particular, da mobilidade dos estudantes e dos investigadores, não iluminam um novo caminho de futuro; pelo contrário, procuram justificar ou iludir tristes e graves realidade.
A UE forma um maior número de licenciados e doutorados em ciências e tecnologias que os EUA, mas não tem um melhor desempenho por isso. Porque a UE emprega menos investigadores (5,4 por 1000 de população activa, contra 8,7 nos EUA e 9,7 no Japão) e afecta um menor financiamento às actividades de I&D. Isto é, valoriza menos os seus recursos intelectuais em Ciência e Tecnologia.
Na Europa verifica-se significativa «mobilidade» de cérebros; cerca de 35% de alunos estrangeiros em estudos superiores e 50% de empregados estrangeiros em C&T são oriundos de outros Estados Membros; e regista-se uma significativa «importação de cérebros» através da imigração. O presente «alargamento a Leste» tem aí uma das suas mais fortes razões motoras. Mas verifica-se também uma exportação, em que a maioria de trabalhadores em C&T que decidem emigrar são atraídos por melhor oferta de oportunidades nos EUA; a fracção de estudantes europeus que obtêm o respectivo doutoramento nos EUA e prefere permanecer lá, subiu de 50% para 75% no decurso da década de 1990.
A condição de trabalhador científico na Europa tem-se deteriorado progressivamente durante os últimos trinta anos, tal como no outro lado do Atlântico: prolongamento do tempo necessário até atingir uma colocação estável, se é que alcançada, e decrescimento do nível de remuneração em termos relativos, se não mesmo absolutos. Hoje, a maioria dos jovens recém doutorados trabalham em regime de trabalho flexível, remunerados por «bolsas» precárias, à semelhança da maioria dos trabalhadores não qualificados. Em consequência, o número de jovens que procura a C&T como um percurso de estudos e a I&D como uma perspectiva de carreira, está em dramático declínio.
Paradoxalmente, na era da revolução científica e técnica, os trabalhadores científicos são um estrato social proletarizado, à parte os poucos que escolhem ou são escolhidos para venderem o seu trabalho como agentes dos interesses ou promotores da reputação de grandes empresas. Este paradoxo é também uma contradição fundamental do sistema capitalista, que pela sua dinâmica interna destrói e exaure os recursos intelectuais que seriam imprescindíveis para a sua própria reprodução.
________
* Versão resumida em português de uma comunicação apresentada pelo autor no Fórum Social Europeu, em Paris a 14 de Novembro de 2003.
Desde a constituição da ERT - Mesa Redonda de Empresários Europeus - em 1983, do comité europeu da Câmara Americana de Comércio – AmCham – em 1985 e a inauguração do Diálogo Transatlântico de Negócios – TABD – em 1995, todas elas consistindo em parcerias directas de corporações, as novas organizações vieram a exercer influência progressivamente maior em Bruxelas como activas procuradoras das corporações que representam. As duas últimas representam ou incluem multinacionais sediadas nos EUA e testemunham a crescente interpenetração do capital através do Atlântico.
Este processo reflecte uma tendência mais geral em que autoridades regulamentadoras supranacionais, como é a Comissão Europeia, actuam solidariamente com as corporações transnacionais no sentido de debilitarem a acção regulamentadora dos governos nacionais e de permitirem as corporações regulamentarem-se a si próprias. Esta estratégia é veiculada por governantes, funcionários e tecnocratas dos dois lados do Atlântico que procuram lavar o cérebro da opinião pública com sua retórica neoliberal, assumida ou sub-reptícia, construída sobre neologismos tais como: «responsabilidade social das empresas», «sociedade civil» e «stakeholders», com «diálogo» à mistura.
Contabilizemos os grupos de pressão que actuam junto da Comissão Europeia. Existem cerca de 20 mil grupos de interesse, incluindo todas as associações nacionais e as organizações europeias de associação directa, que participam na vida política da UE. Dois terços desses grupos representam interesses do mundo do negócio. Cerca de 10 mil agentes de interesses («lobbyists») trabalham em associações comerciais da UE a nível da União, e vários milhares mais trabalham para associações nacionais ou para corporações que mantêm os seus próprios escritórios em Bruxelas. A soma final ascende a cinco agentes de negócios por cada funcionário da Comissão Europeia!
Ligações próximas entre o mundo universitário e o mundo do negócio também se encontram na comunidade de agentes de interesses em Bruxelas. As associações empresariais fazem bom uso de universitários cuja investigação é financiada por corporações, ou que se movem de uma universidade para uma administração, ou que são contratados como consultores ou agentes de interesses de associações empresariais. Alguns académicos estão satisfeitos por terem a sua consultoria ou investigação financiadas por interesses empresariais, mas muitos são a tal obrigados por não obterem fontes de financiamento alternativas. A situação descrita sugere que os universitários envolvidos nas referidas redes informais universidade/empresa exercem de facto uma função chave de articulação e de legitimação em nome do grande capital.
O processo de globalização reforçou o poder das corporações transnacionais quer sobre os governos quer sobre os interesses sócio-económicos em geral. A influência dos grupos empresariais europeus e transatlânticos está em ascendente e franco conflito com os interesses do mundo do trabalho e demais interesses sociais. E todavia atingiram essa influência com o apoio dos governos nacionais, contra o desejo ou mesmo o conhecimento dos respectivos cidadãos. Um bom número de trabalhadores científicos, de livre vontade ou contrariados, contribuíram e foram cúmplices nisso.
Propriedade intelectual ou apropriação do conhecimento
A finalidade do registo de patentes transformou-se por completo desde que pela primeira vez foi concebido para o bem comum e como incentivo aos inventores. Gradualmente tornou-se objecto de apropriação pelo capital. A propriedade intelectual que pode ser vendida ou cedida sob licença a terceiros é património real ou potencial que pode gerar receitas aliciantes. Em certos sectores industriais, como sejam biotecnologia, produtos farmacêuticos ou telecomunicações, o licenciamento de propriedade intelectual tornou-se numa preocupação maior.
Gabinetes de patentes abrem por todo o lado, a UE promove o Escritório Europeu de Patentes, e o registo e o comércio de direitos de propriedade intelectual tornou-se em negócio graúdo. O mais importante não é o conteúdo, a sua originalidade e a sua viabilidade técnica; não, o que importa sobretudo é possuir um título de registo que possa ser objecto de negócio.
Uma empresa que possua uma carteira de pelo menos 450 patentes e despenda em Investigação e Desenvolvimento (I&D) pelo menos 50 milhões de dólares por ano - e há nos EUA e na UE várias centenas de corporações que ultrapassam estes limiares – detém propriedade intelectual suficiente para dela fazer uma boa linha de negócio com reduzido investimento de capital.
Depois de identificados os títulos comerciáveis e avaliado o seu potencial valor, uma rede de parceiros ou agentes (intellectual-property brokers, consolidators, business builders) entra em acção e reúne esforços no sentido de concretizar negócios de licenciamento de direitos e de troca de activos com outras empresas. Trata-se de um nicho de negócios, em crescimento acelerado, ocupado por pequenas empresas cujo volume de receitas anuais atingiu já o nível de 100 mil milhões de dólares nos EUA.
Empresas de sucesso adoptam programas de propriedade intelectual, a par da I&D realizada intramuros e de fusões e aquisições de activos. Explorar intensamente a propriedade intelectual é certamente difícil e exige especialização científica em profundidade e extensão, de que a maioria das empresas não dispõe internamente e poderá não ter meios para adquirir no exterior. Esta é uma promissora oportunidade emergente para as grandes corporações e as pequenas firmas especializadas partilharem.
Vejamos o que a ERT dizia, recordando que as suas opiniões são ordens para a Comissão Europeia: «Os principais obstáculos no percurso que conduz da invenção à inovação são a burocracia e os sistemas administrativos que mostram completa insensibilidade para com as necessidades da I&D, em particular no que toca a direitos de autor e ao tempo para a exploração comercial. As patentes são dolorosamente lentas de registar e imensamente caras em traduzir e manter. Uma grande transnacional europeia, com mais de mil pedidos de patente por ano, estima que só os custos anuais de tradução ascendem a 20 ou 30 milhões de euros. Um Mercado Comum na verdadeira acepção deve ter uma patente europeia única e funcional». As grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos e as suas despesas são sempre supérfluas.
Mas é verdade que, em termos de desempenho tecnológico global, durante a última década o peso relativo da Europa no pedido de registo de patentes no Escritório Europeu de Patentes (EPO) e na atribuição de patentes no Escritório Norte-americano de Patentes e Marcas (USPTO) declinou. E essa situação é pior no que toca a patentes em tecnologias de ponta. Mas o que estes factos reflectem é, sobretudo, a circunstância que, globalmente, a UE despende bastante menos em I&D (1,94% do PIB em 2000) do que os EUA (2,80%) e o Japão (2,98%). Acresce que o «lapso de investimento» se tem alargado rapidamente desde meados da década de 1990, principalmente em resultado da reduzida contribuição das empresas, que na Europa representam pouco mais de metade das fontes de financiamento da I&D, em contraste com mais de dois terços quer nos EUA quer no Japão. Quer dizer: não só as grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos, como encontram sempre em terceiros as «culpas» para o seu menor desempenho.
A propósito de propriedade intelectual, constatamos como trabalhadores científicos podem ganhar a vida a extrair maiores rendimentos para os proprietários das corporações, a partir da exploração dos resultados científicos e técnicos que os seus colegas de ofício alcançaram algures. Uma vez mais se constata como a propriedade privada coloca o homem em confronto com o homem.
Ética e responsabilidade social
Abunda a invocação de direitos sobre o conhecimento na agora denominada «Nova Economia do Conhecimento». Médicos afirmam «possuir» procedimentos médicos que anteriormente eram partilhados entre colegas. Companhias de software afirmam o monopólio sobre blocos constituintes de códigos de programação. Companhias farmacêuticas reclamam direitos exclusivos sobre produtos químicos extraídos de plantas, insectos e microorganismos. A cartografia do genoma humano realizado através do human genome project é «propriedade privada». Estes desenvolvimentos comprovam que não há qualquer propósito cívico na dita «Economia do Conhecimento» que regule a difusão de informação e o acesso ao conhecimento e às suas aplicações, pelo contrário. O objectivo tornou-se puro lucro a cada vez mais breve prazo.
Afirmações de propriedade privada sobre largos territórios do conhecimento - ou mera informação - proliferam agora porque em todos os domínios de alta tecnologia – na medicina, na biotecnologia, nas indústrias agro-alimentar, de informação e de software – os activos das corporações em «conhecimento» sobem em preço em comparação com activos e recursos mais tradicionais. Testemunhamos uma transição profunda para uma nova era em que activos baseados em «conhecimento» parecem desempenhar um papel de estímulo ao «crescimento económico». Porém esse papel é parte real e parte virtual, e como tal está sujeito ao jogo especulativo, principalmente quando, como agora, o capital económico produtivo é comandado por um mercado de capital financeiro – a «Nova Economia».
A agressividade da actual corrida em direcção ao patenteamento sem fronteiras evidencia-se superlativamente na alienação pelo melhor preço de activos anteriormente pertencentes ao domínio público. Por esta via se alienam instituições públicas e património comum a favor da expansão da propriedade privada. Esta erosão dos direitos comuns ameaça sobretudo os países em desenvolvimento, onde reside a maior parcela tanto de população como de recursos naturais. E ameaça também o próprio edifício da democracia tal como hoje existe, o exercício de direitos políticos e a equidade no acesso a bens económicos. Com a revolução científica e técnica em curso, a relação entre as garantias e os direitos democráticos conquistados com a formação social e o modo de produção capitalista é crescentemente contraditória.
As patentes oferecem à indústria enormes incentivos para explorar as aplicações tecnológicas até limites morais e para além deles, e tão de pressa quanto possível. Mas a favor de quem revertem os potenciais benefícios? Quem colherá as receitas geradas pela reprodução do capital? Que papel activo será comandado pelos trabalhadores científicos que fazem as descobertas, desenvolvem as tecnologias e contribuem para decidir as respectivas aplicações?
Proclamações de propriedade e secretismo no trabalho de desenvolvimento tecnológico, ambos inibem a franca discussão das matérias científicas e, a médio prazo, são ameaças que erodem o curso do progresso científico geral. Trabalhadores científicos quer publicando as suas pesquisas quer proibidos de o fazer por força de contrato, são expropriados dos frutos do seu trabalho, de um modo ou do outro.
A insustentabilidade das políticas educativa e de investigação científica
O utilitarismo das presentes políticas de Educação e de Investigação Científica serve directamente os interesses do capital e contraria o bem social dos povos. Essas políticas não só alimentam os lucros das corporações a expensas dos padrões de vida das nações. Elas, mais cedo do que mais tarde, não são sustentáveis e conduzem a um colapso económico e social. Pode soar apocalíptico mas poderá tornar-se realidade.
No que respeita à Educação, o desempenho dos sistemas educativos está em degradação há décadas, em consequência dessa política utilitarista e da redução de recursos públicos a ela afectados. Nos EUA, porque o sistema educativo é incapaz de formar os necessários licenciados, a maior parte da força de trabalho afectada à Investigação Científica e Desenvolvimento Experimental (I&D) vem do estrangeiro. Na Europa observa-se um curso semelhante de políticas e de acontecimentos. A gravidade da situação só é atenuada (também) pelo recurso à emigração, incluindo a «importação de cérebros» oriundos de países populosos da Ásia e da América Latina. A existência de algumas universidades de grande qualidade nos EUA e na UE não altera o essencial desta questão, pois que o real problema está a montante, nos ensinos básico e secundário, também estes tornados incapazes de formar, em qualidade e quantidade, os jovens necessários para o preenchimento das melhores escolas a nível superior.
A agravar esse quadro, o financiamento da I&D na Europa e nos EUA não tem acompanhado o crescimento do número de trabalhadores científicos, de forma que muitos jovens investigadores não conseguem encontrar trabalho permanente, não se candidatam a projectos por não terem base institucional que suporte tais candidaturas e vão abandonando a profissão, que anteriormente era encarada numa perspectiva de carreira para a vida. A taxa de desemprego entre trabalhadores científicos doutorados está actualmente entre as mais elevadas nos próprios EUA e vem crescendo; e são os investigadores mais jovens que são mais atingidos. Há uma geração atrás, as colocações em pós-doutoramento eram breves períodos de experiência que virtualmente garantiam um posto de trabalho permanente numa faculdade. Agora, pelo contrário, muitos jovens investigadores passam de pós-doutoramento em pós-doutoramento, como trabalhador migrante da economia de alta tecnologia contemporânea. Os discursos oficiais a favor da flexibilização do trabalho e, em particular, da mobilidade dos estudantes e dos investigadores, não iluminam um novo caminho de futuro; pelo contrário, procuram justificar ou iludir tristes e graves realidade.
A UE forma um maior número de licenciados e doutorados em ciências e tecnologias que os EUA, mas não tem um melhor desempenho por isso. Porque a UE emprega menos investigadores (5,4 por 1000 de população activa, contra 8,7 nos EUA e 9,7 no Japão) e afecta um menor financiamento às actividades de I&D. Isto é, valoriza menos os seus recursos intelectuais em Ciência e Tecnologia.
Na Europa verifica-se significativa «mobilidade» de cérebros; cerca de 35% de alunos estrangeiros em estudos superiores e 50% de empregados estrangeiros em C&T são oriundos de outros Estados Membros; e regista-se uma significativa «importação de cérebros» através da imigração. O presente «alargamento a Leste» tem aí uma das suas mais fortes razões motoras. Mas verifica-se também uma exportação, em que a maioria de trabalhadores em C&T que decidem emigrar são atraídos por melhor oferta de oportunidades nos EUA; a fracção de estudantes europeus que obtêm o respectivo doutoramento nos EUA e prefere permanecer lá, subiu de 50% para 75% no decurso da década de 1990.
A condição de trabalhador científico na Europa tem-se deteriorado progressivamente durante os últimos trinta anos, tal como no outro lado do Atlântico: prolongamento do tempo necessário até atingir uma colocação estável, se é que alcançada, e decrescimento do nível de remuneração em termos relativos, se não mesmo absolutos. Hoje, a maioria dos jovens recém doutorados trabalham em regime de trabalho flexível, remunerados por «bolsas» precárias, à semelhança da maioria dos trabalhadores não qualificados. Em consequência, o número de jovens que procura a C&T como um percurso de estudos e a I&D como uma perspectiva de carreira, está em dramático declínio.
Paradoxalmente, na era da revolução científica e técnica, os trabalhadores científicos são um estrato social proletarizado, à parte os poucos que escolhem ou são escolhidos para venderem o seu trabalho como agentes dos interesses ou promotores da reputação de grandes empresas. Este paradoxo é também uma contradição fundamental do sistema capitalista, que pela sua dinâmica interna destrói e exaure os recursos intelectuais que seriam imprescindíveis para a sua própria reprodução.
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* Versão resumida em português de uma comunicação apresentada pelo autor no Fórum Social Europeu, em Paris a 14 de Novembro de 2003.