O sonho da fraternidade na Argélia de Henri Alleg

Miguel Urbano Rodrigues
Dois amigos – o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes e o escritor francês Henri Alleg – aparecem-me como paradigmas do eticismo revolucionário. Ambos, pela desambição e sentido da fraternidade, exemplificaram para mim um tipo de humanismo em via de extinção.
Somente conheci Henri Alleg no Outono da vida, em 1986, na Bulgária, durante um Congresso Internacional de Jornalistas.
Não podia então imaginar que a empatia intelectual surgida naqueles dias seria o prólogo de uma identificação incomum, pela profundidade, nos terrenos ideológico e humano.
Para Alleg a existência não teria significado sem o combate permanente pela revolução social, como infinito absoluto.
Nessa luta os anos vividos na Argélia fizeram dele protagonista de uma saga que foi agora evocada num filme belíssimo de Jean Pierre Lledo.
Não sei como definir o que vi. Não é uma obra com pretensões de reconstruir a história, nem o retrato de um revolucionário. O realizador evitou também a perspectiva ideológica.
O filme produz nos espectadores um efeito de choque. À saída do pequeno cinema do Quartier Latin, em Paris, onde assisti à projecção com Henri, as pessoas, no final, ao identificá-lo, aproximavam-se comovidas. Jovens e idosos abraçavam-no. Alguns permaneciam calados, fitando-o com emoção. Corriam lágrimas pelas faces dos mais velhos.
Henri Alleg é simultaneamente o herói das lendas tornadas reais e o anti-herói, pela sua aversão ao protagonismo.
Nos anos 50 foi o director do diário «Alger Republicain», o único que na Argélia, pela linha editorial e pela composição étnica da equipa, recusava a lógica do sistema colonial.
Num livro – «La grande aventure d’Alger Republicain» – que deveria figurar entre as obras estudadas em todas as Faculdades de Jornalismo do mundo, Alleg evocou, transcorridas décadas, o combate do colectivo do jornal mítico que assumiu o desafio condensado no título do filme. Foi uma luta épica na tentativa de concretizar um sonho que a história desfez.
Eram jovens, corajosos até à ultima fronteira, não temiam perseguir o impossível aparente. Acreditavam numa Argélia fraterna, que fosse a pátria de quantos nela viviam, árabes, berberes, franceses.
O tema do filme é precisamente esse: a fraternidade procurada pela equipa de «Alger Republicain». Nela predominavam comunistas, mas nem todos no jornal eram membros do PC da Argélia, ferozmente perseguido pelo governo da colónia.

Hino à solidariedade

Tudo é na aparência muito simples neste filme doloroso mas exaltante, com cenas que empurram o espectador para um universo de tragédia grega, convidando-o a descer às raízes da condição humana.
É o regresso de Alleg aos cenários onde se travou a batalha de «Alger Republicain» que desencadeia o choque emocional. No cais, ao descer de um navio, é esperado pelos antigos companheiros, os sobreviventes da equipa.
Não se descreve, é preciso ver aquilo. A câmara de Lledo acompanha o cavaleiro da epopeia – um homem de baixa estatura, fino no trato, de voz suave, hoje com 82 anos – na peregrinação por lugares que se tornaram parte da história da Argélia. Rodeado pelos amigos fraternos, volta à antiga redacção de «Alger Republicain», viaja pela Argélia, de Constantina a Oran, reencontra companheiros – e gente jovem que ainda não nascera – e a recordação de grandes lutas, nas minas, nos campos, nas aldeias, nas cidades é muito mais do que uma viagem pelo tempo, porque nas pontes entre o ontem e o hoje o sujeito da história é sempre o povo da Argélia. A angústia do presente não afecta a admiração que inspira o combate das gerações que para conquistar a independência suportaram os horrores de uma guerra genocida na qual morreram quase um milhão de argelinos.
A passagem pela prisão central de Argel-a Barberrousse – e pelas salas onde Henri foi torturado – traz à memória crimes que a França oficial da V República insiste em minimizar ou mesmo negar.
O jornal foi fechado em 55. Henri passou à clandestinidade e foi preso em 57 pelos pára-quedistas do general Massu.
Os acontecimentos submeteram o herói não herói à maior prova da sua vida.
Num livro pungente – «La Question» – ele descreveu, como talvez nenhum outro escritor da nossa época, o mundo medonho da tortura. Henri escreveu na prisão e o livro saiu dela, folha por folha. Resistiu a tudo, até ao pentotal, o famoso «soro da verdade».
Quando «La Question» – essa a palavra usada pelos oficiais de Massu para designar a tortura – apareceu nas livrarias, a emoção foi enorme. Tamanha que três Prémios Nobel, Roger Martin du Gard, François Mauriac e Jean Paul Sartre, tomaram posição num manifesto ao povo francês que teve repercussão mundial. Afinal, o Exército francês imitava a Gestapo.
O livro foi apreendido, mas o objectivo foi plenamente atingido. Esse extraordinário documento terá contribuído para apressar o fim da guerra na Argélia. «La Question», traduzido em muitos países, foi também editado por partidos revolucionários na clandestinidade, que erigiam em exemplo o comportamento de Henri Alleg na prisão.
O filme de Lledo leva os espectadores a uma Argélia desaparecida. O sonho não se materializou. Mas o exemplo de Henri Alleg e dos seus companheiros de «Argel Republicain» permanece como fonte de ensinamentos. A fidelidade aos princípios, a coerência na luta, a serena, indomável coragem do autor de «La Question», trazem à memória aquilo a que Robert Antelme chamou a «verdadeira nobreza de pertencer à espécie humana».
Nesta época de covardias, de profunda crise de civilização, de abjectas «guerras preventivas», de genocídios inseparáveis da ganância ilimitada do capital, quando um sistema de poder monstruoso adquire os contornos fascizantes de um IV Reich, o combate de Henri Alleg reconforta. A obra do escritor – tal como a vida – é um hino à solidariedade entre os homens. A luta do revolucionário carrega uma maravilhosa mensagem de confiança e esperança.


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