A memória mutilada
Haverá, decerto, muitos poetas comunistas (ou muitos comunistas poetas, se os devotos do rigor preferirem esta fórmula) acerca dos quais muito se pode falar sem que se torne eticamente obrigatório referir a sua opção política e partidária. Com, alguns, porém, isso não é possível sem que a omissão configure um acto censório de extrema baixeza. É o caso de Louis Aragon. É o caso de Nazim Hikmet. É o caso de Pablo Neruda. É também o caso de José Carlos Ary dos Santos. Por isso, quando ao assinalar o 20.º aniversário da morte de Ary a RTP se deu ao aparente luxo de transmitir dois programas acerca do poeta sem que, contudo, a militância partidária tão presente na sua poesia tenha sido referida, um natural reflexo de repugnância tomou conta de muitos, porventura de quase todos os telespectadores. Não era apenas a falsificação escandalosa de uma biografia: era uma agressão violenta contra o património moral de um homem a quem a morte roubara a possibilidade de repor a verdade. O mesmo é dizer que era uma cobardia. Podemos imaginar como, se pudesse, Ary teria trovejado a sua cólera contra o esbulho de que foi alvo. Resta que sejamos nós, os que o admiramos e continuamos a ser seus camaradas, a assumir a indignação que ele já não pode ter.
O primeiro dos programas com que a RTP assinalou este ano o aniversário da morte de Ary fez parte da programação do dia 18, data em que o poeta morreu, mas foi transmitido já para lá da fronteira da meia-noite, o que decerto resultou em audiência escassa. Tratou-se da retransmissão de um filme que em 2001 Rogério Ceitil realizou e que começou de um modo curioso: com o depoimento de uma senhora relativamente desconhecida que avançou com palavras pouco ou nada lisonjeiras para a memória do poeta. É claro que não se preconiza que um documentário biográfico, seja ele de quem for, contenha apenas elogios e expressões de comovida saudade, mas iniciá-lo com um depoimento quase descredibilizante não é apenas original: é bizarro e fica à beirinha de ser suspeito. De qualquer modo, a transmissão já no princípio da madrugada ter-lhe-á retirado impacto, pelo que até podemos ter a atitude quase generosa de fazer de conta que nem aconteceu.
Tentativa de castração
Foi diferente quanto ao segundo dos programas que assinalaram o aniversário da morte de Ary: intitulou-se «Rua da Saudade» e foi transmitido no chamado horário nobre de terça-feira, dia 20, com repetição na tarde do passado domingo, sempre no canal principal da RTP. Nele se falou abundantemente no talento de Ary dos Santos como co-autor de canções e, também, embora só de passagem, como publicitário. Porém, à sua luta política só ali se ouviu uma breve alusão feita por José Jorge Letria, e quanto ao seu empenhamento partidário nem sequer uma referência igualmente fugaz. Contudo, estava ali, em destaque no estúdio, quase uma dúzia de criaturas que com Ary dos Santos privaram de muito perto, que haviam conhecido muito bem quanto o Partido era importante para ele, com que intensidade o poeta fez dádiva de si próprio e da sua poesia a Abril e ao PCP. Estavam ali, mas calaram, alguns para minha grande surpresa. Estavam ali, sabiam, mas traíram. Porque aquele silêncio acerca de uma dimensão fundamental da biografia de José Carlos Ary dos Santos consubstanciou não apenas uma mentira por omissão grave mas sim, também, uma traição.
O programa incluiu a transmissão de um breve momento em que o próprio Ary declamava o seu poema que termina com um verso conhecido: «Poeta castrado, não!». Perante aquele programa tão estrategicamente incompleto, muitos terão pensado, naturalmente, que o que foi tentado por aquele punhado de criaturas foi a castração póstuma do poeta pelo menos na memória colectiva do País. Admito que tenha havido pressões nesse sentido: já há vinte anos, como o «Avante!» recordou no número anterior, a RTP se abalançara a cometer a mesma feia acção. Se tais pressões ocorreram, é uma tristeza que tenham sido tão completamente acatadas; mas o que é imperativo registar nesta coluna é o seu tristíssimo resultado. Foi a prática colectiva de uma falsificação escandalosa e indigna, foi a metamorfose em agressão de qualquer coisa que poderia ter sido uma homenagem. Foi também o nítido sinal de um tempo apodrecido. A ensinar-nos algumas coisas, a lembrar-nos outras. A fazer-nos sentir a falta que nos faz José Carlos Ary dos Santos.
O primeiro dos programas com que a RTP assinalou este ano o aniversário da morte de Ary fez parte da programação do dia 18, data em que o poeta morreu, mas foi transmitido já para lá da fronteira da meia-noite, o que decerto resultou em audiência escassa. Tratou-se da retransmissão de um filme que em 2001 Rogério Ceitil realizou e que começou de um modo curioso: com o depoimento de uma senhora relativamente desconhecida que avançou com palavras pouco ou nada lisonjeiras para a memória do poeta. É claro que não se preconiza que um documentário biográfico, seja ele de quem for, contenha apenas elogios e expressões de comovida saudade, mas iniciá-lo com um depoimento quase descredibilizante não é apenas original: é bizarro e fica à beirinha de ser suspeito. De qualquer modo, a transmissão já no princípio da madrugada ter-lhe-á retirado impacto, pelo que até podemos ter a atitude quase generosa de fazer de conta que nem aconteceu.
Tentativa de castração
Foi diferente quanto ao segundo dos programas que assinalaram o aniversário da morte de Ary: intitulou-se «Rua da Saudade» e foi transmitido no chamado horário nobre de terça-feira, dia 20, com repetição na tarde do passado domingo, sempre no canal principal da RTP. Nele se falou abundantemente no talento de Ary dos Santos como co-autor de canções e, também, embora só de passagem, como publicitário. Porém, à sua luta política só ali se ouviu uma breve alusão feita por José Jorge Letria, e quanto ao seu empenhamento partidário nem sequer uma referência igualmente fugaz. Contudo, estava ali, em destaque no estúdio, quase uma dúzia de criaturas que com Ary dos Santos privaram de muito perto, que haviam conhecido muito bem quanto o Partido era importante para ele, com que intensidade o poeta fez dádiva de si próprio e da sua poesia a Abril e ao PCP. Estavam ali, mas calaram, alguns para minha grande surpresa. Estavam ali, sabiam, mas traíram. Porque aquele silêncio acerca de uma dimensão fundamental da biografia de José Carlos Ary dos Santos consubstanciou não apenas uma mentira por omissão grave mas sim, também, uma traição.
O programa incluiu a transmissão de um breve momento em que o próprio Ary declamava o seu poema que termina com um verso conhecido: «Poeta castrado, não!». Perante aquele programa tão estrategicamente incompleto, muitos terão pensado, naturalmente, que o que foi tentado por aquele punhado de criaturas foi a castração póstuma do poeta pelo menos na memória colectiva do País. Admito que tenha havido pressões nesse sentido: já há vinte anos, como o «Avante!» recordou no número anterior, a RTP se abalançara a cometer a mesma feia acção. Se tais pressões ocorreram, é uma tristeza que tenham sido tão completamente acatadas; mas o que é imperativo registar nesta coluna é o seu tristíssimo resultado. Foi a prática colectiva de uma falsificação escandalosa e indigna, foi a metamorfose em agressão de qualquer coisa que poderia ter sido uma homenagem. Foi também o nítido sinal de um tempo apodrecido. A ensinar-nos algumas coisas, a lembrar-nos outras. A fazer-nos sentir a falta que nos faz José Carlos Ary dos Santos.