O tesouro e o poder
Estava na forja a anterior peça desta série do «Avante!» (Entre o sagrado e o empresarial / Uma igreja que navega à vista) e eis que veio à luz, no DN de 6.12.003, uma entrevista exemplar concedida àquele jornal pelo padre Vítor Melícias, detentor de uma brilhante folha de serviços na área sócio-caritativa da igreja. E não é só aí que VM se revela: ultrapassa limites e é vice-presidente do Conselho Económico e Social e presidente do Conselho Geral do Montepio, para além de desempenhar outras funções de grande relevância como as de direcção da União das Misericórdias, de coordenação dos hospitais públicos SA, etc. Poucos portugueses se poderão orgulhar da acumulação de tantos cargos de direcção. Compreende-se, assim, que o jornalista que assina a peça do DN declare, maravilhado: «Vítor Melícias começa a ser o rosto da acção social em Portugal!».
De tudo isto, retenha-se que o sacerdote é necessariamente um homem bem informado acerca do sector português da saúde. «A sociedade civil, no exercício da actividade, sobretudo de defesa dos direitos sociais, deve ter prioridade sobre a acção do Estado» - afirmou o franciscano - «Está em causa o princípio da proximidade, da subsidariedade e, até, o da humanização. Por isso, o Estado deve ser supletivo da sociedade civil e não o contrário. As misericórdias querem que o Estado burocrático, o Estado patrão, o Estado assistencialista, se transforme num Estado coordenador, motivador da sociedade civil, designadamente através das suas instituições. Trata-se de desregulamentar o Estado, desburocratizar a protecção social, descentralizar para a sociedade civil o que à sociedade civil pertence. O Estado erra em não ser um Estado teologal, regido por Deus e pelos anjos. É regido por homens e estes têm as suas limitações ...».
Durão Barroso, Berlusconi ou o cardeal Sodano não se exprimiriam de maneira diferente. Aliás, este é um dos discurso habituais da direita canónica.
O negócio dos hospitais
Afirma-se no cabeçalho da entrevista: «Vítor Melícias falou do trabalho das misericórdias e das suas ambições...». O que, com efeito, aconteceu. O padre, à pergunta - Como subsistem financeiramente as Santas Casas? - respondeu assim: «Obviamente, com o apoio financeiro do Estado, enquanto se mantiver a actual estrutura fiscal de arrecadação das receitas. As receitas comuns do país são recolhidas pelo Estado, logo (este) tem a obrigação de as pôr à disposição da sociedade civil, para a cobertura das suas diversas iniciativas». Nessa altura, talvez embriagado com a sua própria facilidade de expressão, o humilde franciscano não resistiu em dar voz às sua íntimas esperanças. Acrescentou ainda uma confissão: «Até ao dia - e oxalá que ele esteja para breve - em que seja possível a própria sociedade civil ser arrecadadora e aplicadora directamente dessas receitas. Enquanto instituições sociais, também ditas de economia social, as misericórdias criaram, no seio da União das Misericórdias Portuguesas, o Grupo de Misericórdias Saúde (GMS) para assim estruturar e, de certo modo, coordenar a sua reentrada na área da saúde da qual foram privadas em 1975».
Entender o sentido destas declarações não requer grandes subtilezas. Estão expressas em português corrente. Então, VM, foi ainda mais além. Assim, quando o entrevistador perguntou: «Isto (as posições da igreja na área da saúde) significa um combate aos lobbies privados?», o padre foi muito claro na sua resposta: «Não usaria a palavra combate. Não se trata de lutar mas sim de ocupar o espaço vazio respectivo, por quem o deva fazer, evitando designadamente que algum sector privado, por ganância, faça da saúde um mercado lucrativo...». Como é evidente, tudo isto é de um imenso despudor. Serve, entretanto, para pôr em evidência o verdadeiro sentido de alguns conceitos-chave de que a hierarquia católica usa e abusa, como os de solidariedade, subsidiariedade, caridade, serviço, desinteresse ou ausência de ambição. Enquanto acumula tesouro e poder. «Eu não tenho receios» - concluiu VM - «Tenho a obrigação de alertar para a tentação de fazerem da saúde comércio. A saúde é um produto da humanidade».
O modelo orgânico da União das Misericórdias é o das holdings do Grupo Mello. O negócio dos hospitais parece ir de vento em popa.
De tudo isto, retenha-se que o sacerdote é necessariamente um homem bem informado acerca do sector português da saúde. «A sociedade civil, no exercício da actividade, sobretudo de defesa dos direitos sociais, deve ter prioridade sobre a acção do Estado» - afirmou o franciscano - «Está em causa o princípio da proximidade, da subsidariedade e, até, o da humanização. Por isso, o Estado deve ser supletivo da sociedade civil e não o contrário. As misericórdias querem que o Estado burocrático, o Estado patrão, o Estado assistencialista, se transforme num Estado coordenador, motivador da sociedade civil, designadamente através das suas instituições. Trata-se de desregulamentar o Estado, desburocratizar a protecção social, descentralizar para a sociedade civil o que à sociedade civil pertence. O Estado erra em não ser um Estado teologal, regido por Deus e pelos anjos. É regido por homens e estes têm as suas limitações ...».
Durão Barroso, Berlusconi ou o cardeal Sodano não se exprimiriam de maneira diferente. Aliás, este é um dos discurso habituais da direita canónica.
O negócio dos hospitais
Afirma-se no cabeçalho da entrevista: «Vítor Melícias falou do trabalho das misericórdias e das suas ambições...». O que, com efeito, aconteceu. O padre, à pergunta - Como subsistem financeiramente as Santas Casas? - respondeu assim: «Obviamente, com o apoio financeiro do Estado, enquanto se mantiver a actual estrutura fiscal de arrecadação das receitas. As receitas comuns do país são recolhidas pelo Estado, logo (este) tem a obrigação de as pôr à disposição da sociedade civil, para a cobertura das suas diversas iniciativas». Nessa altura, talvez embriagado com a sua própria facilidade de expressão, o humilde franciscano não resistiu em dar voz às sua íntimas esperanças. Acrescentou ainda uma confissão: «Até ao dia - e oxalá que ele esteja para breve - em que seja possível a própria sociedade civil ser arrecadadora e aplicadora directamente dessas receitas. Enquanto instituições sociais, também ditas de economia social, as misericórdias criaram, no seio da União das Misericórdias Portuguesas, o Grupo de Misericórdias Saúde (GMS) para assim estruturar e, de certo modo, coordenar a sua reentrada na área da saúde da qual foram privadas em 1975».
Entender o sentido destas declarações não requer grandes subtilezas. Estão expressas em português corrente. Então, VM, foi ainda mais além. Assim, quando o entrevistador perguntou: «Isto (as posições da igreja na área da saúde) significa um combate aos lobbies privados?», o padre foi muito claro na sua resposta: «Não usaria a palavra combate. Não se trata de lutar mas sim de ocupar o espaço vazio respectivo, por quem o deva fazer, evitando designadamente que algum sector privado, por ganância, faça da saúde um mercado lucrativo...». Como é evidente, tudo isto é de um imenso despudor. Serve, entretanto, para pôr em evidência o verdadeiro sentido de alguns conceitos-chave de que a hierarquia católica usa e abusa, como os de solidariedade, subsidiariedade, caridade, serviço, desinteresse ou ausência de ambição. Enquanto acumula tesouro e poder. «Eu não tenho receios» - concluiu VM - «Tenho a obrigação de alertar para a tentação de fazerem da saúde comércio. A saúde é um produto da humanidade».
O modelo orgânico da União das Misericórdias é o das holdings do Grupo Mello. O negócio dos hospitais parece ir de vento em popa.