Os Hospitais SA

O ataque cirúrgico à Lei de Bases da Saúde (Conclusão)

Eugénio Rosa
A primeira coisa que fez o ex-funcionário do grupo Mellos, agora ministro da Saúde, foi alterar cirurgicamente alguns artigos da Lei de Bases da Saúde que eram fundamentais para poder satisfazer o apetite dos grandes grupos económicos.
Os artigos que foram alterados cirurgicamente foram os seguintes:
Base XXXIII da Lei que tratava do financiamento e que passou a ter a seguinte redacção: «O SNS é financiado pelo OE através dos actos e actividades realizados de acordo com uma tabela de preços», portanto é introduzida a lógica quantitativa no financiamento que serve fundamentalmente aos privados já que cria, desta forma, o mercado seguro, porque financiado pelo OE, que os privados necessitavam para se poderem desenvolver com segurança. Depois o ministro publicou legislação que generalizou o financiamento das unidades de saúde com base no pagamento do número de actos de saúde realizados a todo o sector (aos hospitais em funcionamento pela nova Lei de Gestão Hospitalar; aos hospitais a construir pelo DL 185/2002; e aos Centros de Saúde pelo DL 60/2003).
A 2ª medida cirúrgica tomada pelo ministro da Saúde, com base na Lei de Bases da Saúde, foi publicar legislação que tornou possível a entrega de instalações e equipamentos de saúde adquiridos com dinheiros públicos à gestão e exploração privada. E a razão é que o risco que os privados enfrentam se realizassem investimentos na área da saúde era muito grande porque os equipamentos são cada vez mais caros e desactualizam-se muito depressa devido ao rápido desenvolvimento tecnológico. Assim, de acordo com o artº 10, nº1 da nova Lei de Gestão Hospitalar publicada em 2002, passou a ser permitido a «cessão ou exploração de um centro de responsabilidade de um serviço médico a grupos de profissionais de saúde ou a entidades públicas e privadas que demonstrem capacidades». Desta forma, abriu-se a porta à entrega à exploração de entidades privadas os serviços mais rentáveis dos hospitais em funcionamento (ex.: serviços de hemodiálise, blocos operatórios, etc.) ficando no sector público aquilo que não dá lucro.
Em relação aos hospitais a construir, o DL 185/2002, no seu artº 8, estabelece que «a concepção, construção, financiamento e exploração» dos novos hospitais é feito por entidades privadas cabendo ao Estado assegurar um mercado seguro, porque financiado pelo OE, com base num contrato que pode atingir 30 anos.
Finalmente, e em relação mesmo aos centros de saúde, o artº 23 do DL 60/2003 publicado já este ano permite ao ministro da Saúde «autorizar a gestão de um centro, ou de uma extensão , ou de partes autónomas por entidades públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos que demonstrem capacidade».
Estava desta forma completo o «puzzle» legal que permitirá entregar à gestão e exploração privada as melhores instalações e os melhores equipamentos de saúde adquiridos com fundos públicos, evitando que os grandes grupos económicos privados corram riscos com investimentos de elevados montantes e que se desactualizam muito rapidamente. Desta forma, também se criam as condições, a médio prazo, para que fique no sector público apenas aquilo que os privados não estejam interessados (para utilizar um provérbio popular, a carne ficará para os privados, e os ossos para o sector público, é este o objectivo final da política de saúde do governo PSD/PP).
A 3ª medida cirúrgica tomada pelo ex-funcionário do grupo Mellos foi alterar a Base XXXI da Lei de Bases da Saúde que passou a ter a seguinte redacção: «Os profissionais do SNS estão submetidos às regras da Administração Pública, sendo alargado o regime laboral aplicável, de futuro, à lei do contrato individual de trabalho e à contratação colectiva de trabalho». Abre-se desta forma a porta à generalização da introdução dos contratos individuais de trabalho no SNS e à aplicação das restantes normas do Código de Trabalho ao mesmo sector.
Em resumo, através deste ataque cirúrgico à Lei de Bases da Saúde e, depois, por meio da publicação de legislação para cada subárea de saúde - hospitais já existentes, hospitais a construir, e centros de saúde -, criaram-se assim as condições indispensáveis para que o sector privado de saúde se pudesse desenvolver sem riscos porque apoiado pelo Estado, através nomeadamente da cedência de instalações e equipamentos adquiridos com fundos públicos e da garantia de um mercado seguro financiados pelo orçamento de Estado

A mercantilização da saúde
através dos Hospitais AS


O que é a mercatilização da saúde e porque razão os Hospitais SA, devido às condições que lhe estão a ser impostas, estão a enveredar pela mercantilização da saúde? Eis as questões importantes que se procurará seguidamente esclarecer.
A «mercantilização da saúde» significa a aplicação prática do já conhecido principio «que quem quer saúde tem de a pagar», ou seja, a saúde passa a ser igual a qualquer mercadoria, como é um carro, a habitação, etc., sujeita à lei da oferta e procura, só tendo acesso a ela, não quem precisa, mas sim quem tem capacidade financeira para pagar o preço que é pedido.
Este princípio aplicado à saúde e, em particular, a unidades hospitalares, determina a preferência por patologias (doenças) em que a relação preço/custo seja mais favorável para o hospital por dar maior margem, marginalizando ou mesmo recusando doenças mais graves ou prolongadas em que os custos a serem suportados pela unidade hospitalar sejam muito elevados e não suficientemente cobertos pelos preços que recebem do SNS; significa também o fecho de serviços que envolvem grandes investimentos ou despesas de funcionamento muito elevados (ex.: serviços de oncologia); leva à preferência por doentes que paguem preços mais elevados (por ex. privados e de subsistemas cujos preços fixados são superiores aos do Serviço Nacional de Saúde, em prejuízo dos doentes do SNS que, por darem menor margem, passarão na lista de prioridades destes hospitais para seguindo lugar), etc..
A aplicação daquele princípio à saúde e, em particular, aos hospitais determina também a utilização de materiais de menor qualidade, por serem mais baratos; a redução da utilização de meios complementares de diagnóstico; a prescrição de medicamentos orientada não essencialmente por critérios clínicos mas fundamentalmente financeiros; a precarização dos vínculos laborais e a intensificação dos ritmos de trabalho, tudo isto com o objectivo de reduzir os custos e aumentar as margens.

Um «fato» por medida

Se se analisar de uma forma objectiva as condições em que foram criados os chamados Hospitais SA e as que estão a ser impostas a estas unidade, conclui-se rapidamente que elas levarão (obrigarão mesmo) a uma rápida mercantilização da saúde em Portugal. E porquê?
Em primeiro lugar, os chamados Hospitais SA foram criados, cada um deles, com um capital inicial de apenas 29 930 000 de euros, ou seja, cerca de 6 milhões de contos. Na mesma altura foram transferidos para estes hospitais as dívidas que tinham herdadas de anos anteriores, o que levou a que aquele capital inicial rapidamente se esgotasse, passando estes hospitais a acumularem dívidas que o Estado se recusa a suportar. Por exemplo, de acordo com notícias publicadas no Jornal de Negócios de 30.10.2003, só 17 Hospitais SA deviam 156 milhões de euros a 48 laboratórios farmacêuticos até ao fim de Setembro de 2003, sendo 101 milhões de euros a mais de 90 dias, e os fornecedores ameaçavam, se aquelas dívidas não fossem pagas ou se o Estado não as garantisse, cortar os fornecimentos àqueles hospitais.
Por outro lado, e de acordo com a lei que os criou estes hospitais terão «até ao fim de 2003, de realizar a avaliação dos seus bens, sendo o valor do capital social alterado de acordo com o necessário». Como muitos destes hospitais possuem um valioso património adquirido com fundos públicos, o que se pretende, com base numa simples operação contabilística, é aumentar significativamente o seu capital social, sem entrada de dinheiro, para assim se poderem endividar junto à banca. E isto porque de acordo também com os seus estatutos, «o endividamento do hospital não pode ser superior a 30% do capital social». Desta forma, criam-se as condições para o aperto financeiro dos Hospitais SA por parte da banca e, eventualmente, para que esta se apodere de parte do seu património no caso dos hospitais não conseguirem pagar as suas dividas.
Para além disso, e de acordo também como a mesma lei que transformou 34 hospitais públicos em 31 hospitais SA, estes hospitais podem «explorar os serviços e efectuar as operações civis e comerciais relacionadas directa ou indirectamente, no todo ou em parte, com o seu objecto», que é a saúde, o que legaliza a comercialização da prática da saúde por estes hospitais. Assim, de acordo com a lei estes hospitais poderão prestar serviços de saúde a clientes que não pertençam ao Serviço Nacional de Saúde. É previsível que estabeleçam para esses clientes - privados e de outros subsistemas (por ex., companhias de seguros) - preços mais elevados do que os fixados pelo SNS o que levará inevitavelmente, até devido ao garrote financeiro que o governo PSD/PP os está a envolver, a atenderem, em primeiro lugar, a esses clientes e só depois aos utentes do Serviço Nacional, porque assim obterão mais receitas com os mesmos custos. Esta é a lógica do sistema que está a ser criado para os Hospitais SA.
Esta situação é ainda agravada com a forma de financiamento que o governo pretende impor a estes hospitais (não apenas a eles) com o objectivo de «poupar» na saúde. A confirmar que o objectivo não é aumentar a eficiência dos meios disponibilizados para a saúde mas reduzi-los, está o anúncio governamental recente, com pompa e circunstância, de uma poupança de 400 milhões de euros nos orçamentos destes hospitais, embora estejam acumulados de dívidas e já se fale da recusa de doentes por estes hospitais (recorde-se as recentes denuncias feitas nesse sentido na TV pelo presidente da associação de administradores hospitalares).
Por outro lado, de acordo com o Relatório do Orçamento de Estado para 2004, estes hospitais serão financiados com base num contrato-programa plurianual celebrado entre o Ministério da Saúde e o Hospital; e será utilizada uma tabela de preços com base na qual o SNS pagará a esses hospitais; e essa «tabela de preços foi calculada com base nas produções contratadas, com uma margem de 10%. Acima desse patamar é pago apenas o custo marginal» (págs. 28 do Relatório OE2004).

A lógica financeira fria e dura

Mais concretamente, o que significa tudo isto? O seguinte: O Ministério da Saúde, através da chamada Unidade de Missão da Saúde, negociará com cada um destes esses hospitais um contrato plurianual que terá um objectivo de produção para cada ano, desagregada em número de consultas, de internamentos, de urgências, etc., que o hospital terá de realizar. Se executar menos apenas receberá pelo realizado, o que significará que receberá menos. Se realizar mais produção do que aquela que está prevista no contrato-programa, e se os valores realizados ultrapassarem em 10% a produção prevista, o hospital será penalizado pois «acima desse patamar é pago apenas o custo marginal» que corresponde somente a uma parte dos custos que o hospital terá suportar com a realização dessa produção superior em mais de 10% ao previsto.
Fica assim claro que o objectivo desta política não é servir os portugueses com mais serviços de saúde, pois se assim o fosse estes hospitais deviam ser premiados por prestarem mais e melhores serviços, o que não sucede; pelo contrário, eles são fortemente penalizados se ultrapassarem em mais de 10% o objectivo de produção fixado. O fim dos hospitais SA é resolver problemas orçamentais de redução do défice.
É a lógica financeira fria e dura que se está a impor a esses hospitais o que, por um lado, reduz drasticamente a sua capacidade para satisfazer uma procura crescente do bem saúde e, por outro lado, impulsiona (obriga mesmo) a introdução da mercantilização da saúde já que esses hospitais para sobreviver terão de aumentar as suas receitas mais do que os custos, e para alcançar isso procurarão aumentar os serviços prestados a clientes privados e a subsistemas porque a margem é maior, em prejuízo dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, porque os preços pagos por este são certamente mais baixos.
A lógica financeira como instrumento para impulsionar a mercantilização da saúde em Portugal, e assim desenvolver rapidamente o mercado privado de saúde, é ainda agravado pelo perfil dos gestores nomeados para estes hospitais, em que o critério de escolha da maioria deles foi, em primeiro lugar, serem da confiança política do Governo («Job for the boys and girls») e, em segundo lugar, a experiência de gestão privada de empresas em que o objectivo essencial é maximizar lucros (não todos, porque para alguns até foi primeiro emprego), portanto são pessoas que na sua maioria não possuem qualquer experiência ou sensibilidade de gestão de unidades de saúde.
E essa conclusão ainda se torna mais clara se se analisar a evolução das despesas públicas com a saúde dos portugueses em 2003 e 2004. Assim, de acordo com o OE 2004 as transferências do OE para o SNS passarão, entre 2003 e 2004, de 5446,9 milhões de euros para 5666,9 milhões de euros, ou seja, terão um aumento em termos nominais de apenas 4%, que é praticamente igual à taxa de inflação em 2003, que ronda os 3,5%, portanto o aumento do orçamento da saúde não suportará certamente o crescimento previsível na procura de saúde em Portugal no ano 2004, pela razões indicadas no início deste estudo.

O que eles já dizem sobre
a política do ministro da Saúde


Em declarações feitas ao jornal «Público» em 23.06.2003, um membro da Comissão Política do CDS, o dr. Varandas Fernandes, que é também cirurgião e por isso conhece bem o sector, afirmou o seguinte (as suas palavras estão entre aspas): (a) «A articulação entre Centros de Saúde e as grandes unidades continua por fazer», o que era fundamental para aumentar a eficiência dos meios utilizados na saúde que o governo afirmava que era ser objectivo; (b) «O problema dos hospitais não é a falta de meios nem a falta de profissionais. É a organização e aqui não tem havido mudanças»; (c) «Na actividade clínica constato que há uma enorme promiscuidade. É fácil deixar de operar de manhã e recuperar cirurgias à tarde recebendo mais. Ou seja, o programa em vez de resolver o problema incentiva o aumento das listas de espera». Não se podia ser mais demolidor para o programa de recuperação de listas de espera deste governo que está a ser feito com elevados dispêndio de fundos públicos e sem alcançar os resultados pretendidos (quando começou havia segundo o Governo 123 000 portugueses em listas de espera, neste momento já existem em lista de espera mais 100 000 portugueses); (c) «Os profissionais estão profundamente desmotivados e com medo do assalto ao sector pelo poder económico»; (d) «O sector privado deveria ser incentivado a desenvolver-se sem ser à custa do serviço público. É preciso separar as águas». É caso para dizer: se eles, os apoiantes do actual Governo, já dizem isto sobre a política de saúde, então a realidade é certamente muito mais grave.

Um pedido final a todos os leitores

Para podermos continuar a aprofundar o estudo sobre a mercantilização da saúde, mas com base em informação ainda de uma forma mais concreta, nomeadamente através dos chamados hospitais SA, agradecemos que quem saiba de situações verificadas que configurem aquela mercantilização, como seja fecho de «serviços não rentáveis», encaminhamento dos «doentes mais dispendiosos» para hospitais não SA, preferência por doentes de subsistemas ou privados em prejuízo dos doentes do SNS, penalizações por terem sido ultrapassado objectivos de produção constantes do contrato programa do hospital SA, etc., etc., que as envie para o endereço [email protected] . Só com a união do maior número de portugueses e com o conhecimento concreto do que se está a passar na saúde, e com o estudo e a sua ampla denúncia, é que será possível defender o direito à saúde para todos os portugueses garantido pelo artº 64 da Constituição da República, direito esse que continua a ser violentamente atacado pelo actual governo.


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