Os povos do Iraque, do Afeganistão e da Palestina na vanguarda da luta (1)
Em 1789, quando o povo de Paris tomou a Bastilha e, posteriormente, Luís XVI foi preso e decapitado, a Europa das Monarquias de Direito Divino viu na França, com apoio da Inglaterra, um país sem lei, governado por aventureiros sanguinários. Logo se formaram contra ela coligações.
Milhões de pessoas não compreenderam então que a Revolução Francesa era um acontecimento decisivo para o progresso da humanidade.
Há poucos anos, em Washington, os governantes criaram a figura dos rogue states para colocar na lista de alvos de eventuais guerras preventivas países que, no âmbito da sua estratégia planetária, pretendiam atacar e, eventualmente, ocupar. A expressão, propositadamente vaga, não estabelecia fronteiras nítidas entre estados, países e povos. Através de campanhas perversas de desinformação, o objectivo era claro: persuadir a opinião pública ocidental de que nessas terras sem ordem imperava a lei da selva imposta por bandidos e terroristas. Libertá-las e democratizá-las seria um dever civilizatório. A doutrina do «humanismo militar» - bem analisada por Perry Anderson - deu suporte teórico às agressões, justificadas em nome de grandes princípios. E, sem procuração dos próprios aliados, os EUA atribuíram-se o direito de desencadear a guerra quando e onde o julgassem oportuno. O ataque à Jugoslávia foi um ensaio geral.
Seria, obviamente, um absurdo estabelecer qualquer paralelo entre a França revolucionária do final do século XVIII e as sociedades afegã e iraquiana contemporâneas quando submetidas a ditaduras brutais. O que se repetiu foi a desinformação. Em ambas as situações históricas foi desenvolvido um esforço sistemático para deformar o significado dos acontecimentos e persuadir o mundo de que e a guerra era absolutamente indispensável e um acto ético.
Entretanto, a grande mentira sobre o Iraque, mesmo nos EUA, só funcionou parcialmente. Ficou transparente que:
1. Os ditadores e líderes fundamentalistas não eram o objectivo real.
2. A vítima dessas guerras de agressão foram os povos.
Guerras de longa duração
Transcorreram mais de dois anos desde que o Afeganistão foi invadido e as suas principais cidades bombardeadas com selvajaria. No Iraque, a agressão principiou há oito meses e Washington - com a ajuda da Grã-Bretanha - executou-a, desafiando o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Milhões de pessoas saíram às ruas em 600 cidades para condenar essa guerra criminosa.
Em ambos os casos governos fantoches instalados pelos EUA não controlam a situação. No Afeganistão as tropas de estrangeiras, sob comando da NATO, não saem praticamente de Cabul e das bases militares ali instaladas, e no Iraque o comando norte-americano reconhece que se implantou o caos.
Transcorreu algum tempo antes que duas outras conclusões se impusessem a sectores cada vez mais amplos da humanidade:
1. Os povos dos países invadidos e bombardeados cujas riquezas são saqueadas rejeitam em massa a ocupação estrangeira. Resistem.
2. Esses povos, ao lutarem pela libertação nacional, batem-se hoje pela humanidade inteira no grande combate em desenvolvimento contra um sistema de poder de contornos neofascistas.
Nos EUA (e em menor escala na Grã-Bretanha) é transparente a desorientação dos responsáveis pelo rumo dos acontecimentos.
Nos primeiros dias de Novembro, o derrubamento no Iraque de dois helicópteros (22 militares mortos e dezenas de feridos) funcionou como espoleta de críticas vindas de sectores sociais muito diversificados. A certeza de que na Mesopotâmia e na Ásia Central apenas principiou uma guerra que, segundo o presidente Bush, havia terminado em Abril com uma grande vitória dos EUA, começa a adquirir a dimensão de um pesadelo para os eleitores da grande República.
O que desespera o norte-americano médio não é tanto tomar conhecimento de crimes repugnantes cometidos pelas suas Forças Armadas, nem saber que no Afeganistão e no Iraque, ruínas e museus que eram património da humanidade foram bombardeados pela USAF ou saqueados ante a indiferença dos marines. Os egoísmos próprios de uma sociedade de consumo cada vez mais desumanizada pela Mc World Cultura funcionam como defesa, embotando sensibilidades. O que gera sobretudo angústia nos eleitores é o descobrimento de que foram enganados e o temor de que aquelas guerras distantes sejam de longa duração e terminem em desastre e humilhação como aconteceu no Vietname. O desembarque dos caixões gera tensão e angústia crescentes.
O próprio subsecretário Paul Wolfowitz, um dos ideólogos da estratégia de dominação planetária, reconheceu (ao comparecer, deprimido, perante a televisão, após o bombardeamento do hotel de Bagdad onde se hospedava) que a resistência iraquiana se apresenta organizada e tudo aponta para um conflito prolongado. O procônsul em Bagdad, Paul Bremer, e os comandantes-chefes, generais Abizaid e Ricardo Sanchez, têm a mesma opinião.
Já não é possível repetir a cantilena da Al Qaeda e atribuir a Ben Laden e a gente de Sadam Hussein acções reveladoras do alto nível de organização alcançado em escasso tempo pela Resistência do povo do Iraque à agressão dos EUA e da Grã Bretanha.
A desorientação do alto comando norte-americano assume aspectos grotescos. Dela tivemos um exemplo expressivo após o derrubamento do segundo helicóptero. A primeira nota oficial admitia que o aparelho pudesse ter caído por avaria mecânica. Mas os depoimentos de testemunhas que descreveram como foi abatido por um míssil terra-ar, obrigaram a Força Aérea a reconhecer o óbvio. A reacção, inesperada, foi recebida com espanto. O comando decidiu bombardear, como represália, o bairro onde caiu o helicóptero. Nos últimos dias, áreas urbanas onde soldados americanos foram atacados começaram a ser bombardeadas em várias cidades, no âmbito de uma operação intitulada «Martelo de ferro».
Esses gestos fazem lembrar pela irracionalidade e ineficácia vindictas das SS nazis. No Pentágono, um grupo de generais dedicou muitas horas a estudar o filme de Pontecorvo «A batalha de Argel», empenhado em extrair ensinamentos da feroz repressão que os pára-quedistas de Massu desencadearam na Kasbah daquela cidade contra a população muçulmana, na esperança ilusória de aniquilar ali a rebelião da FLN.
Ao que parece, não chegaram a conclusão alguma útil. A iniciativa, por si só, é esclarecedora da mentalidade neurótica que se implantou no Pentágono.
Entre a tragédia e a farsa
A atmosfera de desalento e medo que se instalou nos quartéis norte-americanos transparece de artigos e entrevistas publicados pela chamada grande imprensa. As mortes diárias de soldados, abatidos a tiro, ou vítimas de minas que explodem sob os carros em que viajam contribuem para tornar rotineiro os desabafos: «amanha toca-me a mim!» e «o que faço eu aqui?»
As sentinelas, quando colocadas em postos perigosos, disparam contra tudo o que se move, incluindo crianças, cães e gatos. Uma das consequências desse clima de pânico permanente é o aumento de massacres de civis.
A soldadesca norte-americana não é nem melhor nem pior do que outras. O seu comportamento abominável resulta da engrenagem que a jogou no caldeirão iraquiano. O corpo de oficiais, sobretudo nos escalões superiores, está contaminado pelas sementes do fascismo. E, quando isso acontece, os «rapazes», na base da pirâmide, começam a cometer crimes abjectos. Sobre a chacina de Mazar-i- Charif, o saque de Kandahar e o corte de línguas aos prisioneiros em Seberghan, no Afeganistão, já foram escritas milhares de palavras. Talvez a imagem mais dramaticamente reveladora do nível de desumanização a que desceram os invasores norte-americanos, transformados em peças de uma máquina monstruosa, sejam as fotos de crianças iraquianas e afegãs (algumas com menos de seis anos) transmitidas no dia 10 de Novembro pp pela cadeia de TV árabe Al Jazira e logo amplamente divulgadas em dezenas de países. Essas crianças aparecem a ser amarradas e maltratadas por soldados do Exército dos EUA.
No mesmo dia, a BBC, numa entrevista a um cientista britânico da ONG Medact, alertou para uma tragédia em andamento: a saúde das próximas gerações de iraquianos será gravemente afectada pelas consequências da destruição dos sistemas de abastecimento de agua potável, pela falta de vacinas básicas, pela contaminação da atmosfera provocada pelos incêndios dos oleodutos e poços de petróleo.
Reportagens assinadas por jornalistas sérios e de prestígio, como o inglês Robert Fisk e o australiano John Pielger, e artigos de Michel Chossudovsky e da Monthly Review esboçam de Bagdad, Mossul, Tikrit, Fallujah e outras cidades do país quadros de uma terra na qual o caos se implantou no quotidiano, eliminando a fronteira entre o real e fantástico. A tropa dos EUA surge nele como conjunto alucinatório. Movimenta-se, actua, pensa, dispara e mata imitando ora personagens de tragédias de Euripedes ora figuras de novelas de Garcia Marquez.
É improvável que Bush e Rumsfeld saibam sequer que Euripedes existiu. A pouca intimidade de ambos com a história e o seu desconhecimento do teatro grego não impedem, porém, que a «solução» encontrada pelo Pentágono expresse bem o pânico e a desmoralização da tropa. Rumsfeld e os seus generais afirmam que não haverá uma redução brusca dos efectivos do exército de ocupação. Uma tal medida é, a curto prazo, perante a dimensão das acções armadas da Resistência, militarmente impensável. Seria, aliás, interpretada como acto capitulador. Mas a decisão tomada de substituir o mais rapidamente possível os 128 000 soldados e oficiais dos EUA que se encontram no Iraque por um número sensivelmente igual de militares mobilizados para o efeito, vale por uma prova da desconfiança que inspira hoje o exército de ocupação aos seus próprios chefes.
A esperança do Pentágono de que a França, a Alemanha e a Rússia - que dispõem de exércitos profissionais respeitados em Washington - participassem na ocupação do Iraque esbarrou com o não categórico dos governos daqueles países. Os contingentes militares polaco, italiano e espanhol são inexpressivos e os destacamentos enviados, a pedido de Aznar, por repúblicas «bananeras» da América Central lembram tropas de opereta.
Indecorosa é também a cumplicidade do governo PSD-PP com os agressores anglo-americanos. O envio de um destacamento da Guarda Nacional Republicana para o Sul do Iraque não é apenas um acto de capitulação. Configura uma ofensa ao povo cujas Forças Armadas cumpriram um papel histórico na revolução de Abril. Militarmente é uma farsa na qual os homens da GNR, voluntários ou não, pouco importa, são tratados como bonecos robotizados que podem vir a ter a sorte dos carabineiros e soldados italianos do quartel de Nasiriya a que estavam aliás destinados. Exigir o regresso imediato da GNR passou a ser um dever nacional.
Outra vergonha foi a presença de jornalistas portugueses empenhados em escrever sobre a missão da GNR. O sequestro de um repórter da TSF e o ferimento de uma jornalista da SIC valem por um convite à reflexão sobre um tipo de jornalismo que não dignifica a profissão.
A Hollywood ligada ao Poder manifestou desde o início da agressão ao povo do Afeganistão a sua disponibilidade para colaborar com Washington. Reiterou a oferta quando o Iraque foi invadido e ocupado. Mas hoje parece cada vez mais difícil ser convincente na apologia da grandeza militar dos EUA. A Coreia e o Vietname abalaram muito o mito do heroísmo dos marines e dos rapazes da tropa de linha, e mais ainda o do génio estratégico dos seus generais, trabalhosamente construído após a guerra contra o Japão e a Alemanha (1).
Os EUA, após a desagregação da URSS, dispõem de uma superioridade militar esmagadora no mundo actual. Não se antevê em tempo previsível a emergência de uma potência em condições de atingir, no tocante a armamentos, um nível sequer próximo do seu.
A capacidade de destruir das suas Forças Armadas é praticamente ilimitada. Isso ficou demonstrado durante a Guerra do Golfo em 90, obteve confirmação no ataque à Jugoslávia e, agora, na nova e devastadora agressão ao Iraque.
Mas a indiscutida superioridade militar dos EUA é posta em causa quando, em países ocupados, as suas forças terrestres são obrigadas a enfrentar inimigos que desenvolvem contra elas uma guerra não convencional. Os êxitos alcançados no Afeganistão e no Iraque pela Resistência vieram chamar a atenção para a incapacidade do comando norte-americano e os seus efeitos no baixo moral das tropas.
Segundo os porta-vozes do Pentágono, os ataques da Resistência aumentam num ritmo alarmante. Actualmente verificam-se entre três e quatro dezenas de acções ofensivas diárias contra os ocupantes. No início eram ataques, isolados, a tiro, nas zonas urbanas, ou iniciativas de suicidas. Agora, no deserto, nas montanhas, nas cidades multiplicam-se emboscadas, explosões de minas e de carros- bomba. As forças patrióticas começaram a utilizar um armamento diferente. De repente, comboios de carga, colunas em marcha, objectivos estratégicos são atingidos por fogo de morteiros pesados, por lança granadas, ou mesmo por mísseis terra-terra. A destruição de mais dois helicópteros no dia 15 de Novembro (doze mortos) gerou uma atmosfera de pânico nos quartéis da Força Aérea.
A sabotagem dos oleodutos e das instalações petrolíferas entrou quase no quotidiano. A produção de petróleo, que atingira 2 100 000 barris diários no mês anterior à guerra, caiu para metade.
Os ataques empreendidos contra o hotel das Nações Unidas, o edifício da Cruz Vermelha, a sede do governo de transição fantoche, o hotel onde se encontrava Paul Wolfowitz, o quartel italiano em de Nasiriya, e numerosas instalações militares norte-americanas deixam entrever, segundo o Pentágono, um surpreendente nível de preparação, capacidade técnica e organização.
Quase simultaneamente, apesar das pressões a que foram submetidas, as Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional decidiram retirar do país todo o seu pessoal estrangeiro, dado a insegurança generalizada existente.
As paredes da tríada EUA-Grã Bretanha-Espanha foram, entretanto, abaladas pela transferência para a Jordânia do pessoal diplomático da embaixada de Espanha. Aznar, o mais servil dos aliados de Bush, não conseguiu evitar essa medida, reveladora das fragilidades da coligação. Na Itália a morte de 19 soldados e carabineros e dois civis em Naziriya provocou uma onda de emoção. Berlusconi está em maus lençóis. Os protestos contra a guerra, exigindo o regresso das tropas assumem ali grandes proporções. Podem e devem ser retomados em diferentes países europeus.
Substituir o mais breve possível, antes da realização de eleições (obviamente manipuladas), o actual governo fantoche por outro igualmente tutelado por Washington, mas anunciado como plenamente autónomo tornou-se quase uma obsessão em Washington. Há poucas semanas a Casa Branca e o Pentágono opuseram-se a essa «solução». Agora passaram a defendê-la. A manobra criaria condições políticas para a redução do exército de ocupação. O que se esboça, num clima de grande confusão, é o prólogo do fracasso de toda uma ambiciosa estratégia planetária, concebida para a eternidade.
________
(1) Em conversas mantidas com oficiais franceses e alemães quando era deputado à Assembleia Parlamentar da União da Europa Ocidental, organização político-militar, tive a oportunidade de verificar que muitos tinham opiniões negativas sobre o Exército dos EUA e a capacidade do seu corpo de oficiais. Em 1951, ao visitar na Normandia os campos de batalha de Junho de 44, ouvi ali depoimentos similares. Eisenhower foi, como comandante supremo, somente um general político. Mas os filmes de Hollywood não podem apagar a História. Os três comandantes operacionais na batalha foram britânicos. Montgomery comandou as forças terrestres; o almirante Cunningham as navais; e o marechal Tedder as aéreas. A propaganda que glorificou Patton omite que foi o exército britânico, em Caen e Bayeux, com apoio dos canadianos, que suportou durante os dias que decidiram a vitória aliada, o ataque maciço das divisões panzer de Von Rundstedt e Rommel, quebrando-lhes o ímpeto e aniquilando-as como força de choque, o que permitiu a manobra americana de envolvimento que fechou a bolsa de Falaise.
Seria, obviamente, um absurdo estabelecer qualquer paralelo entre a França revolucionária do final do século XVIII e as sociedades afegã e iraquiana contemporâneas quando submetidas a ditaduras brutais. O que se repetiu foi a desinformação. Em ambas as situações históricas foi desenvolvido um esforço sistemático para deformar o significado dos acontecimentos e persuadir o mundo de que e a guerra era absolutamente indispensável e um acto ético.
Entretanto, a grande mentira sobre o Iraque, mesmo nos EUA, só funcionou parcialmente. Ficou transparente que:
1. Os ditadores e líderes fundamentalistas não eram o objectivo real.
2. A vítima dessas guerras de agressão foram os povos.
Guerras de longa duração
Transcorreram mais de dois anos desde que o Afeganistão foi invadido e as suas principais cidades bombardeadas com selvajaria. No Iraque, a agressão principiou há oito meses e Washington - com a ajuda da Grã-Bretanha - executou-a, desafiando o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Milhões de pessoas saíram às ruas em 600 cidades para condenar essa guerra criminosa.
Em ambos os casos governos fantoches instalados pelos EUA não controlam a situação. No Afeganistão as tropas de estrangeiras, sob comando da NATO, não saem praticamente de Cabul e das bases militares ali instaladas, e no Iraque o comando norte-americano reconhece que se implantou o caos.
Transcorreu algum tempo antes que duas outras conclusões se impusessem a sectores cada vez mais amplos da humanidade:
1. Os povos dos países invadidos e bombardeados cujas riquezas são saqueadas rejeitam em massa a ocupação estrangeira. Resistem.
2. Esses povos, ao lutarem pela libertação nacional, batem-se hoje pela humanidade inteira no grande combate em desenvolvimento contra um sistema de poder de contornos neofascistas.
Nos EUA (e em menor escala na Grã-Bretanha) é transparente a desorientação dos responsáveis pelo rumo dos acontecimentos.
Nos primeiros dias de Novembro, o derrubamento no Iraque de dois helicópteros (22 militares mortos e dezenas de feridos) funcionou como espoleta de críticas vindas de sectores sociais muito diversificados. A certeza de que na Mesopotâmia e na Ásia Central apenas principiou uma guerra que, segundo o presidente Bush, havia terminado em Abril com uma grande vitória dos EUA, começa a adquirir a dimensão de um pesadelo para os eleitores da grande República.
O que desespera o norte-americano médio não é tanto tomar conhecimento de crimes repugnantes cometidos pelas suas Forças Armadas, nem saber que no Afeganistão e no Iraque, ruínas e museus que eram património da humanidade foram bombardeados pela USAF ou saqueados ante a indiferença dos marines. Os egoísmos próprios de uma sociedade de consumo cada vez mais desumanizada pela Mc World Cultura funcionam como defesa, embotando sensibilidades. O que gera sobretudo angústia nos eleitores é o descobrimento de que foram enganados e o temor de que aquelas guerras distantes sejam de longa duração e terminem em desastre e humilhação como aconteceu no Vietname. O desembarque dos caixões gera tensão e angústia crescentes.
O próprio subsecretário Paul Wolfowitz, um dos ideólogos da estratégia de dominação planetária, reconheceu (ao comparecer, deprimido, perante a televisão, após o bombardeamento do hotel de Bagdad onde se hospedava) que a resistência iraquiana se apresenta organizada e tudo aponta para um conflito prolongado. O procônsul em Bagdad, Paul Bremer, e os comandantes-chefes, generais Abizaid e Ricardo Sanchez, têm a mesma opinião.
Já não é possível repetir a cantilena da Al Qaeda e atribuir a Ben Laden e a gente de Sadam Hussein acções reveladoras do alto nível de organização alcançado em escasso tempo pela Resistência do povo do Iraque à agressão dos EUA e da Grã Bretanha.
A desorientação do alto comando norte-americano assume aspectos grotescos. Dela tivemos um exemplo expressivo após o derrubamento do segundo helicóptero. A primeira nota oficial admitia que o aparelho pudesse ter caído por avaria mecânica. Mas os depoimentos de testemunhas que descreveram como foi abatido por um míssil terra-ar, obrigaram a Força Aérea a reconhecer o óbvio. A reacção, inesperada, foi recebida com espanto. O comando decidiu bombardear, como represália, o bairro onde caiu o helicóptero. Nos últimos dias, áreas urbanas onde soldados americanos foram atacados começaram a ser bombardeadas em várias cidades, no âmbito de uma operação intitulada «Martelo de ferro».
Esses gestos fazem lembrar pela irracionalidade e ineficácia vindictas das SS nazis. No Pentágono, um grupo de generais dedicou muitas horas a estudar o filme de Pontecorvo «A batalha de Argel», empenhado em extrair ensinamentos da feroz repressão que os pára-quedistas de Massu desencadearam na Kasbah daquela cidade contra a população muçulmana, na esperança ilusória de aniquilar ali a rebelião da FLN.
Ao que parece, não chegaram a conclusão alguma útil. A iniciativa, por si só, é esclarecedora da mentalidade neurótica que se implantou no Pentágono.
Entre a tragédia e a farsa
A atmosfera de desalento e medo que se instalou nos quartéis norte-americanos transparece de artigos e entrevistas publicados pela chamada grande imprensa. As mortes diárias de soldados, abatidos a tiro, ou vítimas de minas que explodem sob os carros em que viajam contribuem para tornar rotineiro os desabafos: «amanha toca-me a mim!» e «o que faço eu aqui?»
As sentinelas, quando colocadas em postos perigosos, disparam contra tudo o que se move, incluindo crianças, cães e gatos. Uma das consequências desse clima de pânico permanente é o aumento de massacres de civis.
A soldadesca norte-americana não é nem melhor nem pior do que outras. O seu comportamento abominável resulta da engrenagem que a jogou no caldeirão iraquiano. O corpo de oficiais, sobretudo nos escalões superiores, está contaminado pelas sementes do fascismo. E, quando isso acontece, os «rapazes», na base da pirâmide, começam a cometer crimes abjectos. Sobre a chacina de Mazar-i- Charif, o saque de Kandahar e o corte de línguas aos prisioneiros em Seberghan, no Afeganistão, já foram escritas milhares de palavras. Talvez a imagem mais dramaticamente reveladora do nível de desumanização a que desceram os invasores norte-americanos, transformados em peças de uma máquina monstruosa, sejam as fotos de crianças iraquianas e afegãs (algumas com menos de seis anos) transmitidas no dia 10 de Novembro pp pela cadeia de TV árabe Al Jazira e logo amplamente divulgadas em dezenas de países. Essas crianças aparecem a ser amarradas e maltratadas por soldados do Exército dos EUA.
No mesmo dia, a BBC, numa entrevista a um cientista britânico da ONG Medact, alertou para uma tragédia em andamento: a saúde das próximas gerações de iraquianos será gravemente afectada pelas consequências da destruição dos sistemas de abastecimento de agua potável, pela falta de vacinas básicas, pela contaminação da atmosfera provocada pelos incêndios dos oleodutos e poços de petróleo.
Reportagens assinadas por jornalistas sérios e de prestígio, como o inglês Robert Fisk e o australiano John Pielger, e artigos de Michel Chossudovsky e da Monthly Review esboçam de Bagdad, Mossul, Tikrit, Fallujah e outras cidades do país quadros de uma terra na qual o caos se implantou no quotidiano, eliminando a fronteira entre o real e fantástico. A tropa dos EUA surge nele como conjunto alucinatório. Movimenta-se, actua, pensa, dispara e mata imitando ora personagens de tragédias de Euripedes ora figuras de novelas de Garcia Marquez.
É improvável que Bush e Rumsfeld saibam sequer que Euripedes existiu. A pouca intimidade de ambos com a história e o seu desconhecimento do teatro grego não impedem, porém, que a «solução» encontrada pelo Pentágono expresse bem o pânico e a desmoralização da tropa. Rumsfeld e os seus generais afirmam que não haverá uma redução brusca dos efectivos do exército de ocupação. Uma tal medida é, a curto prazo, perante a dimensão das acções armadas da Resistência, militarmente impensável. Seria, aliás, interpretada como acto capitulador. Mas a decisão tomada de substituir o mais rapidamente possível os 128 000 soldados e oficiais dos EUA que se encontram no Iraque por um número sensivelmente igual de militares mobilizados para o efeito, vale por uma prova da desconfiança que inspira hoje o exército de ocupação aos seus próprios chefes.
A esperança do Pentágono de que a França, a Alemanha e a Rússia - que dispõem de exércitos profissionais respeitados em Washington - participassem na ocupação do Iraque esbarrou com o não categórico dos governos daqueles países. Os contingentes militares polaco, italiano e espanhol são inexpressivos e os destacamentos enviados, a pedido de Aznar, por repúblicas «bananeras» da América Central lembram tropas de opereta.
Indecorosa é também a cumplicidade do governo PSD-PP com os agressores anglo-americanos. O envio de um destacamento da Guarda Nacional Republicana para o Sul do Iraque não é apenas um acto de capitulação. Configura uma ofensa ao povo cujas Forças Armadas cumpriram um papel histórico na revolução de Abril. Militarmente é uma farsa na qual os homens da GNR, voluntários ou não, pouco importa, são tratados como bonecos robotizados que podem vir a ter a sorte dos carabineiros e soldados italianos do quartel de Nasiriya a que estavam aliás destinados. Exigir o regresso imediato da GNR passou a ser um dever nacional.
Outra vergonha foi a presença de jornalistas portugueses empenhados em escrever sobre a missão da GNR. O sequestro de um repórter da TSF e o ferimento de uma jornalista da SIC valem por um convite à reflexão sobre um tipo de jornalismo que não dignifica a profissão.
A Hollywood ligada ao Poder manifestou desde o início da agressão ao povo do Afeganistão a sua disponibilidade para colaborar com Washington. Reiterou a oferta quando o Iraque foi invadido e ocupado. Mas hoje parece cada vez mais difícil ser convincente na apologia da grandeza militar dos EUA. A Coreia e o Vietname abalaram muito o mito do heroísmo dos marines e dos rapazes da tropa de linha, e mais ainda o do génio estratégico dos seus generais, trabalhosamente construído após a guerra contra o Japão e a Alemanha (1).
Os EUA, após a desagregação da URSS, dispõem de uma superioridade militar esmagadora no mundo actual. Não se antevê em tempo previsível a emergência de uma potência em condições de atingir, no tocante a armamentos, um nível sequer próximo do seu.
A capacidade de destruir das suas Forças Armadas é praticamente ilimitada. Isso ficou demonstrado durante a Guerra do Golfo em 90, obteve confirmação no ataque à Jugoslávia e, agora, na nova e devastadora agressão ao Iraque.
Mas a indiscutida superioridade militar dos EUA é posta em causa quando, em países ocupados, as suas forças terrestres são obrigadas a enfrentar inimigos que desenvolvem contra elas uma guerra não convencional. Os êxitos alcançados no Afeganistão e no Iraque pela Resistência vieram chamar a atenção para a incapacidade do comando norte-americano e os seus efeitos no baixo moral das tropas.
Segundo os porta-vozes do Pentágono, os ataques da Resistência aumentam num ritmo alarmante. Actualmente verificam-se entre três e quatro dezenas de acções ofensivas diárias contra os ocupantes. No início eram ataques, isolados, a tiro, nas zonas urbanas, ou iniciativas de suicidas. Agora, no deserto, nas montanhas, nas cidades multiplicam-se emboscadas, explosões de minas e de carros- bomba. As forças patrióticas começaram a utilizar um armamento diferente. De repente, comboios de carga, colunas em marcha, objectivos estratégicos são atingidos por fogo de morteiros pesados, por lança granadas, ou mesmo por mísseis terra-terra. A destruição de mais dois helicópteros no dia 15 de Novembro (doze mortos) gerou uma atmosfera de pânico nos quartéis da Força Aérea.
A sabotagem dos oleodutos e das instalações petrolíferas entrou quase no quotidiano. A produção de petróleo, que atingira 2 100 000 barris diários no mês anterior à guerra, caiu para metade.
Os ataques empreendidos contra o hotel das Nações Unidas, o edifício da Cruz Vermelha, a sede do governo de transição fantoche, o hotel onde se encontrava Paul Wolfowitz, o quartel italiano em de Nasiriya, e numerosas instalações militares norte-americanas deixam entrever, segundo o Pentágono, um surpreendente nível de preparação, capacidade técnica e organização.
Quase simultaneamente, apesar das pressões a que foram submetidas, as Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional decidiram retirar do país todo o seu pessoal estrangeiro, dado a insegurança generalizada existente.
As paredes da tríada EUA-Grã Bretanha-Espanha foram, entretanto, abaladas pela transferência para a Jordânia do pessoal diplomático da embaixada de Espanha. Aznar, o mais servil dos aliados de Bush, não conseguiu evitar essa medida, reveladora das fragilidades da coligação. Na Itália a morte de 19 soldados e carabineros e dois civis em Naziriya provocou uma onda de emoção. Berlusconi está em maus lençóis. Os protestos contra a guerra, exigindo o regresso das tropas assumem ali grandes proporções. Podem e devem ser retomados em diferentes países europeus.
Substituir o mais breve possível, antes da realização de eleições (obviamente manipuladas), o actual governo fantoche por outro igualmente tutelado por Washington, mas anunciado como plenamente autónomo tornou-se quase uma obsessão em Washington. Há poucas semanas a Casa Branca e o Pentágono opuseram-se a essa «solução». Agora passaram a defendê-la. A manobra criaria condições políticas para a redução do exército de ocupação. O que se esboça, num clima de grande confusão, é o prólogo do fracasso de toda uma ambiciosa estratégia planetária, concebida para a eternidade.
________
(1) Em conversas mantidas com oficiais franceses e alemães quando era deputado à Assembleia Parlamentar da União da Europa Ocidental, organização político-militar, tive a oportunidade de verificar que muitos tinham opiniões negativas sobre o Exército dos EUA e a capacidade do seu corpo de oficiais. Em 1951, ao visitar na Normandia os campos de batalha de Junho de 44, ouvi ali depoimentos similares. Eisenhower foi, como comandante supremo, somente um general político. Mas os filmes de Hollywood não podem apagar a História. Os três comandantes operacionais na batalha foram britânicos. Montgomery comandou as forças terrestres; o almirante Cunningham as navais; e o marechal Tedder as aéreas. A propaganda que glorificou Patton omite que foi o exército britânico, em Caen e Bayeux, com apoio dos canadianos, que suportou durante os dias que decidiram a vitória aliada, o ataque maciço das divisões panzer de Von Rundstedt e Rommel, quebrando-lhes o ímpeto e aniquilando-as como força de choque, o que permitiu a manobra americana de envolvimento que fechou a bolsa de Falaise.