Entre o sagrado e o empresarial... (1)

Uma igreja que navega à vista

Jorge Messias
A questão do modo de implantação da igreja católica na sociedade portuguesa já anteriormente foi aflorada nestas colunas. Convém, entretanto, reforçar o que foi dito actualizando acontecimentos. Estes, chegam a ritmo acelerado, dando conta da urgência que pressiona a hierarquia a concretizar acções já anteriormente programadas. Mas revelando, também, as marcas de uma igreja pouco à-vontade consigo própria e com o mundo em mudança que a rodeia.
As alianças minuciosamente calculadas parecem não estar a produzir os desejados frutos. A crise económica aprofunda-se, arrastam-se os tempos da recessão e a tão prometida recristianização continua a não se recortar no horizonte. Comprimida entre os brados de vitória de João Paulo II e as duras realidades da vida, dilacerada pelas contradições, assediada por dúvidas constantes, a igreja portuguesa começa a navegar à vista.
Dizem as agências noticiosas que a publicação do texto revisto da Concordata de 1940 será coisa para poucos dias ou poucas horas. É cousa de espantar, como diria Fernão Lopes. Raros eleitos e escolhidos conhecerão o texto que vai por aí aparecer. A acreditar-se em D. José Policarpo, «isso é matéria a ser discutida entre os especialistas...». Algumas fugas (admitamos que criteriosamente controladas) permitem, todavia, às desprezadas massas populares, tomarem conhecimento, a conta-gotas, de que nas alterações já decididas entre os eleitos se conterá a figura de um novo tipo de ensino: o ensino concordatário, que junta às benesses que a igreja já recebe do Estado nas áreas do ensino particular e cooperativo os favores fiscais e o proteccionismo introduzidos na nova actualização da velha concordata.
Mesmo antes do texto negociado vir a público, percebe-se que crescem no terreno as grandes operações estratégicas de instalação das bases de expansão dos entendimentos Igreja/Estado.

O consórcio Igreja/Mellos

No sector da Saúde, confirmou-se o consórcio Igreja/Mellos, através da parceria Universidade Católica/Grupo Mellos Saúde. O cartel vai concorrer à adjudicação de todos os concursos para as «novas unidades hospitalares» que poderão integrar faculdades de medicina privadas (provavelmente do novo tipo concordatário). O Grupo Mello constrói os edifícios e fornece os equipamentos. A Universidade Católica dará aos alunos das novas escolas «a formação universitária de médicos, enfermeiros e outros técnicos». Igreja e Grupo Mello dividirão entre si, como é natural, os lucros que se adivinham confortáveis.
No meio deste negócio global, o papel do Estado mantém-se convenientemente vago. Braga da Cruz, reitor da Católica, informou ter já entregue a Durão Barroso, em Fevereiro e «com o melhor acolhimento», o anteprojecto de construção de um hospital universitário que envolve os concelhos de Cascais, Oeiras e Sintra. O negócio rondará os 120 milhões de euros. O anúncio foi feito em conferência de imprensa na qual os Mellos estiveram representados pelo seu presidente, Salvador Mello, que a certa altura afirmou: «O governo terá de reequacionar. Um hospital universitário precisa de ter muitos doentes e muitas doenças. Quanto mais extensa e mais vasta for a casuística, mais se pode ensinar!». A notícia, publicada no jornal «Público», termina com este curioso comentário: «Para a Universidade Católica é importante marcar pontos numa área como a da Saúde e da Vida, onde se vão jogar grandes questões humanas». Interessante ramalhete de valores onde o lucro se mistura com a doutrina social católica, com as estratégias da política, com a ligação entre o sagrado e a construção civil ou as seguradoras ou cruzam os cálculos contabilísticos e a solidariedade cristã combina com a exploração da sociedade civil.
Uma febril actividade tecnocrática fervilha, igualmente, noutros estratos da vida social, tais como os da infância, do reagrupamento das ONG e das IPSS, dos alinhamentos territoriais, da concentração dos capitais eclesiásticos ibéricos, da cooperação e desenvolvimento, etc. De momento, tudo quanto se possa dizer a este respeito incorrerá no risco de parecer especulativo. Esperemos, até que o Vaticano, a força que decide em tudo isto, ache por bem divulgar a parte publicável do acordo que hipotecará, no futuro, as garantias do povo português.


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