O reencontro pacífico de fuzileiros que estiveram na guerra colonial

Modesto Navarro
Aquela aproximação ao grupo de homens e mulheres, à porta do restaurante «O Retornado», no Entroncamento, não podia ser mais forte e concludente. Trinta e sete anos depois, voltava a ver grande parte dos fuzileiros da Companhia nº 6, que esteve em Moçambique de 1965 a 1967.
Homens entre 57 e 64 anos, na maioria, ali juntos à conversa, as mulheres à volta, ou a irem dar um passeio pelas redondezas, enquanto não se entrava no restaurante. Vi-os, quando o carro se aproximava, e a primeira frase que construí em pensamento, preocupada e desnecessária, foi: «Estou mesmo velho...»
Estamos mesmo velhos, brancos no cabelo, se ainda temos algum, e pesados. Mas estamos melhores. Aqueles jovens inexperientes, que entraram na Escola de Fuzileiros no início da década de 1960/70, tinham passado pela vida quotidiana, depois da guerra colonial, tinham participado no 25 de Abril ou absorvido o fundamental de uma vida diferente, em liberdade, e desde logo se revelaram nada saudosistas de África, os que conversavam ali à volta, depois de efusivos abraços, à chegada.
Reencontrar Manuel Inácio Peres, o «Barreirense», hoje dirigente sindical de fina água, no Algarve; abraçar de novo António Pacheco, que conviveu com José Craveirinha no hospital da então Lourenço Marques, alentejano de Vale de Santiago, Odemira, e que foi o primeiro a dizer «não à guerra», da Companhia; Rudolfo dos Santos, o «Lisboa», emblemático filho desta cidade que agora vive no Cacém; Francisco Silvério, grande companheiro de noites de guarda em Metangula e no Cóboè, no Lago Niassa, e na Machava, que trabalha num armazém de vinhos no Cartaxo; o cabo Leopoldino Massano, amigo do seu amigo já naqueles tempos da guerra; o António Augusto, entretanto licenciado em economia e com gabinete de contabilidade nos arredores de Lisboa; António João Jeremias, alentejano de Évora, bancário reformado e grande organizador dos últimos almoços e encontros da Companhia, com José Farinha Pereira; José Domingos Cordeiro, o alentejano de Vila Viçosa que era profissional de motores e oficinas mas que deu a profissão de barbeiro (e a exerceu) para ganhar algum dinheiro na tropa; Manuel Luciano Sousa Jorge, o «Ericeira», caríssimo e bem disposto animador destes contactos; João Duarte Moisés, o «Alcoólico», jovem voluntário de Alpalhão que não bebia álcool que se visse mas que tem ainda de transportar esta alcunha irónica; João Alves Crespo, já reformado da PSP e interessado na Associação de Fuzileiros; Manuel Soares Franco, o «Esparguete»; João Miguel, o «Santarém»; José Luís Gonçalves, o do acordeão; Inácio Teixeira; Albano Brito Moita; o cabo António Almeida, de Freamunde, homem firme e justo; o cabo José António Frade (espero não me enganar nos postos da altura); o cabo Tito Rocha, homem providencial da cantina, que aceitava vales quando confiava na gente; Jacinto Domingos, hoje com oficina de automóveis em Ferreira, Albufeira; e Emiliano Leal da Silva, taxista em Faro.
E tantos e tantos companheiros que ainda poderíamos nomear, o que não podemos fazer, por falta de espaço. Eram os amigos de noites e dias antigos, de sofrimento, de angústia e de revolta, de alegrias (poucas) e da descoberta de África, desse imenso país chamado Moçambique que então lutava pela independência. Homens que ali conversavam, que se reconheciam um a um, nas rugas e nas experiências vividas em cada lado, depois de guerra.

As praças da com­pa­nhia

Durante 37 anos recusei-me a voltar à Escola de Fuzileiros e a ir a estes encontros anuais, de companhias e destacamentos, muitos dos quais são ainda utilizados para revivalismos parvos. Mas, neste reencontro com fuzileiros da Companhia 6, desde logo ressaltou a visão inteligente e democrática de que uma coisa tinha sido ir para África, naquela altura, e outra eram os fios de amizade e as solidariedades que se teceram entre nós nos dias amargos e violentos da guerra colonial.
- Estás a ver? – disse-me, a certa altura, um companheiro. – Encontram-se aqui as praças da Companhia. À parte o tenente Esteves Pinto e um ou outro que chegou mais longe, na carreira profissional, quem veio pertence à malta cá de baixo.
Não era preciso dizer mais nada. Nos rostos, nos corpos, nos silêncios e nas alegrias ruidosas, ali estavam muitos e muitos anos de lutas pela subsistência, de desastres e de vitórias pessoais, e sobretudo essa enorme experiência que é a mãe da vida, no quotidiano duro que tivemos de enfrentar depois da guerra. Joaquim Ferreira, o “Bigodes”, vive em França, é emigrante e veio ao almoço com a mulher, a filha e o genro, um jovem que, por acaso, é transmontano e também foi para França, em pequeno, com os pais. Outros emigraram e voltaram, e outros não partiram. Ficaram por aqui, na região de Lisboa, ou regressaram à terra, depois da vida na Marinha.
Um a um, cara a cara, poderíamos falar das tentativas de arranjar trabalho, das fábricas, das empresas, das terras que lavraram, das oficinas onde aprenderam novas profissões, dos bancos e escritórios que marcaram as existências de quem teve e tem de enfrentar a vida e fazer o caminho a pulso e ao sabor do conhecimento duramente adquirido e da inteligência. Era Portugal, na sua expressão mais exacta e profunda, o que ali sentia, nos homens satisfeitos e encantados que se reconheciam e abraçavam de novo, no operário da TAP, Manuel Torradinhas, que me falou da prisão de Manuel Candeias e de como, de 1970 e até 1973, se solidarizaram, na Manutenção, para assegurarem a subsistência à família deste caro camarada e apoiar a Comissão de Socorro aos Presos Políticos, nos homens que participaram na Revolução de Abril e rasgaram novos horizontes, naqueles que tiveram algumas ilusões guerreiras e que descobriram, na sua inimaginável profundidade, mais tarde, a brutalidade do grande erro fascista, ao impor a guerra colonial aos povos de África e ao povo português.

Até para o ano

Foram uma manhã e uma tarde bonitas, naquele restaurante «O Retornado» (pronto, não tinha de ter este nome, mas o retorno de África existiu e deixa marcas por aí...), no Entroncamento, terra de antigos «fenómenos» que agora se apresenta grande e progressiva. Foi um dia de reconciliação com o passado violento da experiência em África, da minha parte. Vale a pena ir a estes encontros, quando o sinal é positivo e aponta para uma consciência clara de que a guerra colonial foi destruidora, que nos marcou indelevelmente, para sempre, mas que reforça sobretudo o que fica, o que queremos que fique, ou seja, esta amizade renascida, este companheirismo que nos faz encarar o futuro com esperança.
Para o ano, quando nos reencontrarmos, talvez já sejamos menos. Mas será ainda maior e mais límpido o nosso olhar, a amizade com que nos abraçaremos, no ano em que o 25 de Abril fará 30 anos e em que novamente brindaremos à paz e à amizade entre os trabalhadores e filhos do povo que somos.


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