A trinta anos de vista

Correia da Fonseca
Como se saberá, o semanário «Notícias da Amadora», aquela espécie de barricada que há mais de quarenta anos tem vindo a conseguir resistir em aparente inverosimilhança, vem publicando desde há meses, como separatas, uma colecção de cadernos dedicados aos cortes da censura fascista, organizados por temas. Chegou agora a vez dos abundantes cortes perpetrados pelos censores em textos de crítica de televisão. Quem tiver a curiosidade bastante, aliás salutar, para fazer um breve regresso ao passado através das páginas deste último caderno ficará decerto impressionado e talvez até surpreendido, como eu próprio fiquei, com a actualidade de boa parte dos fragmentos, por vezes extensos até serem a totalidade dos textos visados, que a censura cortou. E a partir dessa actualidade não deixará de reflectir sobre o que ela significa.
Os que nasceram depois de 74 ou mesmo alguns anos antes têm a natural tendência para supor que essa estória da censura de que falam os mais velhos não era assim uma coisa tão pesada e total como se conta. Que os tão falados cortes talvez incidissem apenas sobre matéria claramente política, no género de directos apelos à revolução ou à clara apologia do comunismo e de todas as doutrinas subversivas», para retomar aqui a expressão usada num decreto salazarista que ficou célebre. Mas estão enganados, e esta necessariamente limitada colecção de textos mutilados prova-o. A censura ia, por vezes, ao ponto de exercer uma espécie de protecção pessoal de alguns sujeitos ou sujeitas contra a eventual acidez crítica, decerto porque os criticados mereciam, por uma razão ou por outra, especial carinho de quem mandava. Mas não será por aí que se revela a tal actualidade a que acima se refere: há coisas mais importantes e significativas que a defesa da mediocridade de fulano ou cicrano. Por exemplo: o efeito da televisão sobre o que pensa ou não pensa, e portanto sobre o que faz ou não faz, toda uma população, todo um país.

O estupefaciente

Num serão do longínquo Outono de 72, a RTP lembrou-se de transmitir o filme «Belarmino», de Fernando Lopes, e, ao que parece, a transmissão esteve longe de suscitar um agrado generalizado do público habituado a outros paladares. Perante esse facto, o crítico de TV de «Notícias da Amadora» atreveu-se a escrever um longo comentário que a censura haveria de cortar na sua maior parte e, designadamente, no seguinte: «Pois o público português é exigente: exige o pior. E será acostumado a ser invariavelmente atendido. (...) Porquê? Parece-nos evidente que o público da televisão foi laboriosamente condicionado durante anos, para não escolher de outra maneira. Para o telespectador comum, o seu aparelho de televisão há-de funcionar como uma fricção analgésica, vagamente gostosa, que lhe permite receber em «boa disposição» o equivalente ao dinheiro investido no aparelho e na taxa anual, se a paga. E, para ele, estar bem disposto é não se comportar como um sujeito inteligente e sensível. (...) É não tomar conhecimento de que os outros existem; é deixar que decidam o seu próprio destino, o futuro dos filhos, a sobrevivência de todos. E, entretanto, estar distraído com qualquer coisa que não lhe dê o trabalho de pensar. Para isso, a TV serve. Melhor: para isso é que a televisão portuguesa tem mostrado querer servir. (...) Porque a mediocridade é um estupefaciente de um tipo particular que tem também a sua legião de drogados exigentes da dose diária, em crise aguda quando ela lhe falta.»
Foi, como se indicou, há mais de trinta anos. A censura cortou estas passagens e muitas outras com elas convergentes. É preciso reconhecer que estava cheia de razão: sendo censura, e censura de um regime fascista de que a repressão cultural, isto é a proibição do entendimento das coisas, era um dos esteios, tinha de cortar. Porém, é impressionante, apetece escrever que é terrível, verificar que as palavras cortadas em 72 são perfeitamente compatíveis com uma televisão que em 2003 tem as suas grandes apostas no «Big Brother», em novelas convenientemente distanciadas da angustiante realidade portuguesa, em noticiários que elegem o escândalo e o catastrofismo como temas de interesse prioritário, em programas/concursos que estimulam a miragem do vedetariato pelo cançonetismo. Passaram trinta anos, não há censura (ou não a há como então), mas aquelas palavras de crítica podiam, sem grave perda de adequação, ser publicadas hoje. Mas não em todos os jornais, acrescente-se.


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