Um assassínio anunciado
Nuno Morais Sarmento, ministro da presidência decerto pela graça de Deus, pois não se pressente qualquer outro motivo aceitável para que o seja, dera há meses claro sinal dar suas disposições acerca do programa «Acontece»: numa curiosa amálgama de aldrabice e ignorância (com a qual, de resto, entrou na história mais recente da anticultura em Portugal), misturou audiências, custos e voltas ao mundo para sugerir que extinguir o programa era uma espécie de dever patriótico. Logo ali se tornou claro que o ministro nem sequer seria capaz de pressentir o que tem sido o «Acontece» no duplo quadro da sociedade portuguesa secularmente condenada pelo poder a multidisciplinares ignorâncias e de uma estação pública de TV cada vez mais cumpliciada com os mercantilismos culturalmente mais empobrecedores. Aliás, o pouco e breve que ele discreteou acerca de cultura deu para que se percebesse que a sua vocação não é bem essa. Porém, a brutalidade das suas palavras de então e a sua manifesta falta de fundamento suscitaram um tal escândalo que, por um lado, o presidente da RTP terá julgado útil vir amenizar a fervura levantada tecendo, pouco tempo depois, considerações tendencialmente simpáticas sobre a programa. A iniciativa teve algum efeito, e à indignada consternação suscitada pelo disparate do senhor ministro misturou?se, aqui e ali, a vaga esperança de que alguém pudesse acorrer a ensinar?lhe umas coisas elementares, desde boas maneiras até o que é isso da cultura e da promoção cultural num país em crónico défice também nessa área. E, entretanto, os meses foram passando.
Que a tal esperança era ingénua, podia adivinhar-se. Até porque é sabido que um dos mais firmes ódios que habitam um sujeito guindado muito acima das suas capacidades é dedicado ás circunstâncias e às gentes que mesmo involuntariamente lhe desmascaram a incompetência. Embora não sendo conhecidas as sabedorias do cidadão Morais Sarmento, que algumas há-de ter além das que o tornaram tristemente conhecido, parece certo que os seus saberes não são os que habilitam um ministro a legislar utilmente sobre um sector, o da comunicação social pela TV, que é hoje decisivo para a formação cultural de um povo. Foi com boas razões que um ministro da Cultura do governo Guterres reivindicou, aliás sem êxito, capacidade de intervenção na érea televisiva, e que um outro, em rápida passagem pela mesma pasta, chegou mesmo a consegui-la fugazmente. A anunciada «solução final» que Morais Sarmento se propõe aplicar a «Acontece» é a prova de que a TV tem a ver com a cultura, o que se demonstra pelo extermínio de um programa que a pode estimular.
A vida sexual dos gafanhotos
Entendamo-nos: «Acontece» nunca foi um programa impecável. Mas foi e ainda é, supõe-se, um programa estimulador da apetência cultural e, simultaneamente, afirmador de que entre nós prossegue, obstinada, a cultura como prática, como geradora de curiosidade intelectual e até como fascínio, resistindo a múltiplos ventos contrários. Aliás, bem se pode dizer que «Acontece» tem sido, também ele, lugar de resistência em que se revêem resistentes de diversificadas matrizes. Compreende-se que esta sobrevivência é desagradável para os que, conscientes ou não de o serem, são herdeiros de uma ditadura que sempre olhou a cultura como uma forma particularmente insidiosa e detestável de subversão, mesmo de criptocomunismo.
Agora veio o dr. Almerindo Marques confirmar que, sim, «Acontece» está condenado à morte e vai ser consequentemente assassinado, mas em seu lugar virá um outro «magazine cultural» de «outro formato».
Como se vê, voltamos às fórmulas genéricas e indefinidas em que gostam de refugiar-se os que não querem ou não sabem explicar-se. Contudo, sendo as coisas o que se sabe serem, é legítimo recear que o tal magazine tenha de facto pouco a ver com a cultura, isto é, com um entendimento adequado do mundo e da vida, e muito a ver com um cientismo em farrapos, género documentário acerca da vida sexual dos gafanhotos do Bornéu.
Não sei se o dr. Almerindo, que é economista, isto é, especialista de uma técnica sectorial, sabe que cultura é outra coisa, mas sei que seria prudente pedir conselho a quem saiba. Não lhe sugiro o dr. Sarmento, naturalmente, nem o dr. Roseta, que não dá sinais de se interessar pelo ramo. Fico à beira de sugerir o nome do jornalista Carlos Pinto Coelho, que está ai à mão, mas reconheço que o senhor ministro era capaz de não gostar e, afinal de contas, não só é ele quem manda como está visto que quer mesmo mandar (e também que o dr. Almerindo quer obedecer, já o disse). É contra a lei, que estipula a independência da RTP face à tutela, mas quem se importa com essa coisa obsoleta que é a legalidade? E não está o Governo farto de fazer saber que não tem jeito para respeitar as leis, esse embaraço, essa chatice, a começar pela Constituição da República?
Que a tal esperança era ingénua, podia adivinhar-se. Até porque é sabido que um dos mais firmes ódios que habitam um sujeito guindado muito acima das suas capacidades é dedicado ás circunstâncias e às gentes que mesmo involuntariamente lhe desmascaram a incompetência. Embora não sendo conhecidas as sabedorias do cidadão Morais Sarmento, que algumas há-de ter além das que o tornaram tristemente conhecido, parece certo que os seus saberes não são os que habilitam um ministro a legislar utilmente sobre um sector, o da comunicação social pela TV, que é hoje decisivo para a formação cultural de um povo. Foi com boas razões que um ministro da Cultura do governo Guterres reivindicou, aliás sem êxito, capacidade de intervenção na érea televisiva, e que um outro, em rápida passagem pela mesma pasta, chegou mesmo a consegui-la fugazmente. A anunciada «solução final» que Morais Sarmento se propõe aplicar a «Acontece» é a prova de que a TV tem a ver com a cultura, o que se demonstra pelo extermínio de um programa que a pode estimular.
A vida sexual dos gafanhotos
Entendamo-nos: «Acontece» nunca foi um programa impecável. Mas foi e ainda é, supõe-se, um programa estimulador da apetência cultural e, simultaneamente, afirmador de que entre nós prossegue, obstinada, a cultura como prática, como geradora de curiosidade intelectual e até como fascínio, resistindo a múltiplos ventos contrários. Aliás, bem se pode dizer que «Acontece» tem sido, também ele, lugar de resistência em que se revêem resistentes de diversificadas matrizes. Compreende-se que esta sobrevivência é desagradável para os que, conscientes ou não de o serem, são herdeiros de uma ditadura que sempre olhou a cultura como uma forma particularmente insidiosa e detestável de subversão, mesmo de criptocomunismo.
Agora veio o dr. Almerindo Marques confirmar que, sim, «Acontece» está condenado à morte e vai ser consequentemente assassinado, mas em seu lugar virá um outro «magazine cultural» de «outro formato».
Como se vê, voltamos às fórmulas genéricas e indefinidas em que gostam de refugiar-se os que não querem ou não sabem explicar-se. Contudo, sendo as coisas o que se sabe serem, é legítimo recear que o tal magazine tenha de facto pouco a ver com a cultura, isto é, com um entendimento adequado do mundo e da vida, e muito a ver com um cientismo em farrapos, género documentário acerca da vida sexual dos gafanhotos do Bornéu.
Não sei se o dr. Almerindo, que é economista, isto é, especialista de uma técnica sectorial, sabe que cultura é outra coisa, mas sei que seria prudente pedir conselho a quem saiba. Não lhe sugiro o dr. Sarmento, naturalmente, nem o dr. Roseta, que não dá sinais de se interessar pelo ramo. Fico à beira de sugerir o nome do jornalista Carlos Pinto Coelho, que está ai à mão, mas reconheço que o senhor ministro era capaz de não gostar e, afinal de contas, não só é ele quem manda como está visto que quer mesmo mandar (e também que o dr. Almerindo quer obedecer, já o disse). É contra a lei, que estipula a independência da RTP face à tutela, mas quem se importa com essa coisa obsoleta que é a legalidade? E não está o Governo farto de fazer saber que não tem jeito para respeitar as leis, esse embaraço, essa chatice, a começar pela Constituição da República?