A pneumonia atípica e o «perigo amarelo»

Francisco Silva
De volta a Lisboa, a bordo do avião, dia 29 de Junho de 2003, final de tarde. De novo o 1.º de Maio a chegar. De novo a bordo, que é como quem diz, primeiro ver jornais (que ler é sobretudo os livros), depois comer o que me põem pela frente, em seguida escrever teclando no computador até começar a descida para Lisboa, quando a leitura de um livro eleito (ou mais livros eleitos) já me espera outra vez. Neste voo de volta a Lisboa apanho no «International Herald Tribune» e no «Diário de Notícias» notícias - informação - sobre a pneumonia atípica, já menos espectaculares que há uns dias. A fase mais espectacular da Guerra do Iraque também já lá vai (O que virá a seguir?).
Comecemos pelos números (eu e o vício dos números chineses, ou será o ambiente que mos faz notar?) do «International Herald Tribune». São números sobretudo acerca dos chineses - dos «amarelos» que já não serão comunistas, daqueles que nos trazem todos os males? -, mas também números acerca do resto do Mundo. Vamos a eles então. Número de casos declarados: China, sem Hong Kong e Macau - 3106; Hong Kong - 1557; resto do Mundo - 4800. Mortes declaradas: China, sem Hong Kong e Macau - 139; Hong Kong - 138; resto do Mundo - 332. Fontes: autoridades nacionais de Saúde e Organização Mundial de Saúde (OMS). Na «nossa» Macau, nada.
Deu-me vontade de fazer algumas contas - o redutor cientismo ocidental a atacar-me? -, tal é a nossa mania das percentagens ou, pelo menos, dos valores relativos ou comparados. Como português, estou acostumado a populações de 10 milhões de habitantes. Então, divido os 3106 doentes e 139 mortos chineses por 130 e dá-me, se fosse por cá, 24 doentes e 1 morto. Para Hong Kong (é Ocidente!), com os seus 8 milhões de habitantes, multiplico os seus valores por 1,25 e obtenho, respectivamente, 1946 doentes e 163 mortos. Resto do Mundo, divido por uns 430 e dá: 11 doentes e 0,8, isto é, não atinge um morto. Pois é, os números são o que são, caramba!
Os números são o que são, dão ás mil maravilhas para as demagogias, podem mesmo, para os bem intencionados e até para os mais experientes na sua utilização conduzir a erros tremendos, mas também nos podem ajudar a tentar compreender os fenómenos e sobre eles actuar. Neste caso, é óbvio que os resultados do Resto do Mundo não ajudam nada. Teríamos de ir aos números dos países mais atacados, os do Sudeste Asiático e o Canadá (melhor dito, aos números de Toronto). Mas nos jornais que tenho à mão não os encontro. Tudo vem marcado pela obsessão chinesa. Será por que o vírus que provoca a pneumonia atípica veio da China?
É claro que, se me ativer aos números relativos à China sem Hong Kong e sem Macau (este «sem» pesa relativamente pouco, uma vez que a população de Hong Kong é menos de 150 vezes a da China e, no caso de Macau, serão uns 2600 chineses para cada macaísta?), como, normalizados a uma população de 10 milhões, tenho 24 doentes na China e 1946 em Hong Kong, podíamos ficar com a ideia que a situação, quanto a doentes seria 1946: 24 = 81 vezes mais grave em Hong Kong do que na China. E, em número de mortos, como 163:1 = 163, a situação em Hong Kong seria 163 vezes mais grave do que na China. Não é nada difícil seguir por este caminho!
Interrompi por aqui o escrever deste texto, porque começou a fase final da descida para Lisboa e já nos mandaram desligar todo e qualquer aparelho electrónico… isto é estão a referir-se ao computador onde estou a escrever. No dia seguinte ia continuar - e continuei - os cálculos sobre estes números: na China a razão dos mortos relativamente aos declarados atacados pela pneumonia atípica (139 : 3106 = 0,045 ou 4,5%) é de cerca de metade do valor que se regista em Hong Kong (130 : 1557 = 0,083 ou 8,3%). Hong Kong parece pior, porquê? Piores condições de higiene? Uma «densidade» populacional mais elevada? É difícil responder.
Mas entretanto, fui olhando outra vez, e com mais cuidado, para as notícias para mim «mais escondidas» nos recortes do «Diário de Noticias» que tinha surripiado do avião. E li que a OMS já não estava preocupada, entre outros, com o Vietname (elogiadas as suas autoridades), com o Canadá (Toronto), já estabilizados, e mesmo com Hong Kong que já tinha atingido o pico e, a partir de aí - podia entender-se -, começaria a decrescer a sua intensidade. Mas a China, sim, preocupava a OMS - estaria ainda em expansão. E li também que, mesmo na China a situação variava - em Xangai, praticamente nada e em Guangdong já se vislumbrava uma estabilização.
A situação é bastante complexa, como seria de esperar. Mas foi o que me pareceu ser uma dominante da Comunicação Social sobre as «culpas» do regime chinês em detrimento de uma informação rigorosa sobre o assunto que me levaram a tentar perceber por mim mais do que se passa…


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