Dois motivos de alarme

Jorge Messias
De súbito, por entre os preocupantes cenários do mundo real, irromperam duas questões metafísicas. A primeira, de âmbito doutrinal, foi assumida por João Paulo II na sua recente carta pastoral «Ecclesia de Eucharistia», divulgada durante o período da Páscoa. A segunda, de interesse orgânico, foi referida pelo bispo do Porto, D. Armindo Lopes Coelho, ao «Diário de Notícias» (20.4.003). O bispo falou no problema das contradições sentidas pela igreja nacional quando a vocação pastoral das paróquias entra em rota de colisão com a acção social desenvolvida pelas instituições paroquiais privadas, como Misericórdias, ONGS, IPSS, etc. «As paróquias», advertiu D. Armindo, «têm entrado numa certa aventura de se abrirem para as soluções sociais que a sociedade civil também assume... e põe-se já o problema de quem cria a obra: a Igreja ou a Junta de Freguesia?... E se, por enquanto, há um bom entendimento entre as instituições, existe o perigo de se virem a entender mal ...». A delicadeza da questão reside em que «a Igreja não pode renunciar à acção social, porque também faz parte da sua missão».
Regressando ao papa João Paulo II e à sua dura, ditatorial e inesperada intervenção, oposta ao espírito da aproximação ecuménica proclamada pelo Vaticano II, o que foi dito é revelador da ansiedade que cresce no íntimo dos cardeais católicos, bloqueados pelos dogmas tradicionais. Aparentemente, os tempos que atravessamos exigiriam uma rápida aproximação da Igreja católica às outras grandes confissões, fossem elas cristãs, islâmicas, budistas ou xintoístas. Num mundo global dominado pelas tecnologias materialistas e pela sofreguidão do lucro, nem sequer se colocariam objecções quanto ao dever da igreja católica seguir nesse sentido pastoral. Segundo a doutrina, a unidade faz-se pela acção e pelo exemplo. Só que o Vaticano tem interesses estabelecidos que se não compadecem com a sua própria doutrina. E o ex-Santo Ofício estremece só de olhar os perigos do mundo de hoje. Na verdade, embora o não confesse, os seus prognósticos são dos mais negros em relação ao aventureirismo capitalista. Os grandes interesses destroem o próprio sistema. Tudo indica estar em curso um dramático cisma do mundo financeiro e do tecido social em que o Vaticano está envolvido. É necessário evitá-lo. Ora, é evidente para a Santa Sé que qualquer impensado avanço do ecumenismo pode vir a envolver os riscos da sua socialização, ao lado dos direitos dos povos. Assim, os movimentos religiosos unitários, no actual quadro do relativismo da fé e da disciplina, podem constituir canais de fuga ao controlo das cadeias eclesiásticas do poder. Porque é débil, no mundo de hoje, a fronteira que separa o sagrado e o profano. Veja-se, por exemplo, a ameaça que surge da Alemanha e põe em causa a autoridade de Roma. Minorias católicas e não católicas convocaram para finais de Maio, em Berlim, um Congresso da Igreja Ecuménica onde, em gigantescos cultos, católicos e protestantes irão surgir em pé de perfeita igualdade. O que, para o Vaticano, é heresia. Na gramática fundamentalista, Ecumenismo significa subordinação do mais fraco ao mais forte, das igrejas divididas ao trono papal. Tal como acontece, na esfera imperial, com a «Pax Americana» oferecida por G.W. Bush. Embora tão afastados no espaço e nos temas que os motivam, estes dois casos protagonizados pelo Bispo de Roma e pelo Bispo do Porto não deixam de ter um traço comum. Em ambas as intervenções se nota o alarme que a hierarquia sente quando pisa o solo lamacento das realidades sociais. E quando lhe consta, por remota que seja a informação, ser possível que algo ou alguém conspire contra a soberania da Ordem ou duvide, na prática, da infalibilidade do Papa ou da Unidade do Mistério.
A séria oposição com que a igreja de João Paulo II se virá a confrontar partirá, seguramente, do interior do universo católico. Também a perplexidade revelada pelo bispo do Porto quando refere acerca dos problemas sociais: «A Igreja começou a abrir-se a esta realidade mas a sociedade civil evoluiu de modo a compreender e a assumir essa responsabilidade», traduz o seu inesperado espanto perante as dificuldades, no entanto previsíveis, que complicam as vias de manutenção do poder religioso como moderador da sociedade contemporânea.


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