Retratos do trabalho - 7

Isabel Araújo Branco (texto)
Jorge Cabral (Fotos)

O que leva um cabo-verdiano a escolher o nosso país para trabalhar na construção civil? É difícil renovar o visto para se manter legal? Como é viver do teatro em Portugal? O mundo artístico é compensatório? São mais duas profissões a descobrir nestes Retratos do Trabalho publicados pelo Avante!: actriz e operário da construção civil.

 

José Correia,
servente da construção civil

Operário sem construção

 

José Silva Correia chegou a Portugal em 2000 com um visto de 30 dias concedido em Cabo Verde, a sua terra natal. O seu objectivo não era passar férias nem visitar o pai – imigrado no nosso país há vários anos –, mas sim arranjar um emprego que lhe permitisse melhorar a vida da mulher e dos três filhos que deixou numa aldeia da ilha de Santiago.

 

«Lá não há trabalho, não chove, há muitas dificuldades. Eu andava numa horta na lavoura, mais tarde fui trabalhar no carro de um tio meu como motorista. Depois pensei em vir para cá. Vim com a intenção de trabalhar, mas não podia dizer senão não me deixavam entrar», conta.

 

Alto, com porte atlético e olhar tímido, José Correia, de 26 anos, está desempregado por ainda não ter renovado o visto de permanência em Portugal como imigrante. A trabalhar como servente na construção civil, foi despedido há um mês pelo patrão que o empregou nos últimos dois anos.

 

«Quando quis renovar o visto, dei-lhe os documentos e ele não disse que não mo dava. Até que chegou o fim de Fevereiro e, na hora do pagamento do ordenado, ele disse: "Já não tem mais trabalho." Eu até pensei que fosse para toda a gente, mas foi só para mim. Acho que foi por causa do visto.»

 

Desde então, José está desempregado, tentando encontrar nova ocupação. Vai contactando vizinhos e conhecidos, vai batendo à porta de várias empresas da área da construção civil. Mas falta-lhe uma condição fundamental: estar legal. «Já consegui vários trabalhos, mas perguntam sempre se tenho o visto em dia e eu não tenho. Por isso fica difícil arranjar emprego», assegura.

 

Para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras actualizar o visto, é necessário que o trabalhador apresente um contrato de trabalho e que a sua situação esteja regularizada na Segurança Social. E são muitas as empresas de construção civil que não fazem os descontos devidos sobre os salários dos seus funcionários. Há milhares de trabalhadores na ilegalidade por responsabilidade directa dos patrões.

É também comum os imigrantes assinarem recibos correspondentes a dez dias de trabalho, em vez do mês devido. Por isso, quando ficam desempregados, muitas vezes não têm direito ao subsídio social de desemprego.


A «canseira» ao fim do dia


Quando José Correia foi despedido, teve uma reacção pragmática: «Contei o que se tinha passado a um colega que já cá está há mais tempo e ele informou-se sobre o que eu tinha de fazer.» Foi então que se tornou membro do Sindicato dos Trabalhadores da Construção do Sul. O seu processo está agora nas mãos dos sindicalistas, à semelhança de centenas de outros imigrantes, que não sabem percorrer os trilhos necessários da burocracia portuguesa para renovar o visto.

O primeiro visto de José foi conseguido através de um patrão, cinco meses depois de começar a trabalhar. «No princípio foi difícil arranjar o visto. Um dia, ele disse-me: "Eu dou-te o visto, mas quando o tiveres não foges do trabalho. Muitos já fizeram isso. Se te fores embora, eu cancelo o visto." Eu cumpri todos os contratos.»

O medo é inevitável para quem está em situação ilegal. Em qualquer altura pode ser apanhado pelas autoridades e reenviado para o seu país. «Agora ainda estamos pior. Entraram mais imigrantes em Portugal e começou uma nova lei», afirma.

José mora com o pai no Bairro das Marianas, em Carcavelos, na periferia de Lisboa. Quando estava a trabalhar, «chegava a casa cheio de canseira». Agora passa o tempo à procura de emprego. Até já foi ao Algarve, tentar a sorte nas novas urbanizações. Há três anos, não teve dificuldade em arranjar emprego. «Difícil está agora. No máximo, em quinze dias conseguia trabalho, agora já não. Tenho de ficar à espera do visto, em casa, a ver televisão e a ouvir rádio. Às vezes vou dar uma volta até à estação. Se continuar assim, não sei o que vou fazer.»

José gostaria de se empregar como pedreiro. «Já vi como é, até já fiz alguns trabalhos de pedreiro. Sou capaz de me safar.» O seu objectivo é receber um salário mais elevado. «Um servente ganha 25 euros por dia e um pedreiro ganha 40. Ao fim do mês faz uma grande diferença.»

«O dinheiro que juntei, mandei para a família», conta, recordando a filha mais velha, de seis anos, prestes a entrar na escola primária. As saudades entretanto vão aumentando e José vai sonhando com uma visita a casa. «Se estivesse na minha mão, já tinha ido para lá.» Para isso precisa de dinheiro para a viagem e dos documentos em dia. «Não penso ficar lá. Queira só ir de férias, porque quero continuar a trabalhar aqui.»

 

Muitas árvores


Mais de metade dos trabalhadores do sector da construção civil são estrangeiros. Desses, a maioria são africanos, mas também há muitos eslavos. Em todos os países da Europa, a maioria dos operários desta área são imigrantes.

Muitas das entidades empregadoras aproveitam-se da fragilidade e da ignorância dos operários para não cumprir os contratos colectivos de trabalho, para pagar salários baixos e para estender o horário de trabalho até às 14 horas por dia.

A falta de segurança nas obras fazem de Portugal o país com mais acidentes de trabalho na União Europeia. José Correia já viu um colega ficar com quatro dedos esmagados num acidente com um guincho. «Às vezes passo por obras que têm mais condições de segurança do que onde trabalhava. A forma como o andaime é construído às vezes é muito perigosa»,

Quando chegou ao nosso país, José não sabia que era este o cenário que o esperava. «Não pensava que havia muito trabalho, mas que, apesar de tudo, havia mais do que em Cabo Verde. Pensava que ia trabalhar e arranjar algum dinheiro para ter uma casa. Continuo com esse sonho e acho que um dia vou conseguir.»

A integração não foi difícil, graças à ajuda do pai. «Aqui é muito mais desenvolvido. Há coisas que eu nem sequer conhecia, como materiais e ferramentas de construção. Pensava que era diferente, que havia menos árvores e menos montanhas. Julgava que era tudo plano.»

A toxicodependência e a venda de estupefacientes foi talvez o que mais chocou José. «No meu bairro vendem muita droga. Eu não conhecia isso. Acho incrível. Aquilo destrói a vida das pessoas. Quando passo e olho para as pessoas a injectar-se, às vezes faz-me comichão no corpo.»

Quando termina uma obra, José tem «a sensação de ter construído uma parte da casa». «O trabalho foi feito pela minha equipa. Tudo em comum é que representa uma casa. Eu dou serventia, outro faz a parede… Cada um faz a sua parte e no fim a obra fica pronta», refere. Mas, nessas ocasiões, outra ideia surge a José. «Lembro-me da casa que já comecei a fazer em Cabo Verde...»

José não se importa de trabalhar noutra área, «desde que ganhe mais ou menos. Para não estar parado, faço qualquer coisa. Menos roubar.» Se não conseguir o visto, possivelmente regressará à sua aldeia. «Ir para outro país ainda é pior. Vamos ver.»



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