Bach

A música da eternidade

Manuel Augusto Araújo

Na semana passada, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, ouviram-se umas excepcionais Variações Goldberg, interpretadas por Pierre Hantai, um dos mais notáveis cravistas da actualidade.

As variações Goldberg resultaram de uma extraordinária encomenda, para os padrões actuais, feita a Johann Sebastian Bach pelo Conde Kaiserling, um aristocrata melómano. As circunstâncias do conhecimento entre Bach e o conde são bem conhecidas .H. C. Kaiserling foi nomeado embaixador da Rússia na Saxónia, e na capital deste principado alemão, Dresden, ouviu falar da família Bach (família que estava ligada à música há mais de um século) e conheceu o mais velho dos filhos de J. S. Bach, Wilhelm Friedemann, organista na igreja de Santa Sofia, nessa cidade e, mais tarde, o próprio Bach que por várias vezes se deslocou a Dresden para dar concertos, estreou o órgão da Frauenkirche, escreveu várias cantatas para Frederico Augusto II, príncipe da Saxónia que viria a ser coroado rei da Polónia, na oportunidade do seu aniversário e da sua coroação.

A admiração de Kaiserling por J. S. Bach foi enorme e é conhecido o relacionamento que estabeleceram, visitando-se várias vezes em Dresden e deslocando-se o conde a Leipzig, onde na altura J. S. Bach residia, ocupando o cargo de Kantor, tendo mesmo sido padrinho do seu último filho.

Sobre a génese das chamadas Variações Goldberg, existe uma boa informação recolhida em depoimentos dos seus filhos.

Sofria o conde Kaiserling de persistentes insónias, pelo que decidiu, para minorar e ocupar as suas noites, encomendar a J.S.Bach «umas peças para cravo a serem tocadas por Johann Goldberg», um jovem e talentoso cravista – tinha 14 anos quando as tocou pela primeira vez – que Kaiserling protegia e que tinha enviado para Leipzig para aí estudar com J. S. Bach, depois de ter confiado a sua formação musical, em Dresden, ao já referido filho de Bach.

Goldberg retorna a Dresden, para casa e ao serviço de Kaiserling, transportando consigo o que viria a ser uma composição para cravo formada por uma ária que introduzia 30 variações que finalizam com uma ária que é uma evocação da inicial.

Esta obra musical que, mais tarde, ficaria conhecida por Variações Goldberg, foi na altura o mais importante ciclo de variações até aí escritas e só comparável a outras duas obras do mesmo Bach, os Livros 1 e 2 do Cravo Bem Temperado. Só muitos anos mais tarde surgirá obra equivalente em dimensão e valor musical: as Variações Diabelli, de Beethoven.

A interpretação de Pierre Hantai distingue-se imediatamente pelo som brilhante e notável do seu cravo (Hantai é um grande conhecedor das técnicas de construção de cravos e muito rigoroso na escolha e afinação desses instrumentos, esse seu conhecimento têm mesmo influência na evolução do fabrico dos cravos) explorando campos sonoros novos, o que coloca problemas interpretativos inovadores na análise e execução das obras em que esse instrumento é central.

Os legatos, de uma fluidez excepcional, deixam soar frases longas, completas, cantantes e os canon são cintilantes (J. S. Bach escreve as Variações Goldberg intercalando entre cada duas variações um canon – que, sumariamente, é a forma mais rigorosa da escrita contrapontística em que uma linha melódica serve de regra para a seguinte) em que o rigor das texturas contrapontísticas adquire uma clareza talvez nunca antes alcançada.

Um concerto excepcional que nos remete para a gravação que Pierre Hantai realizou e que está nos antípodas de outra interpretação clássica, a feita por Glenn Gould em piano, em 1981, em que as «liberdades» assumidas pelo pianista na sua primeira gravação (1955) se atenuam. São duas leituras de Bach que demonstram que o intérprete tem um papel activamente criador quando aborda uma obra. Mas para maior prazer e esclarecimento auditivo permitimo-nos sugerir mais duas interpretações das Variações Goldberg: a de Gustav Leonhardt, em cravo, e a de Evgeni Koroliov, em piano. Da comparação entre estes modos de ler Bach, todos diferentes e todos excepcionais, resulta um imenso prazer e maior compreensão pela obra, porque cada um evidencia aspectos que noutro são menos visíveis e é um exercício que nos faz perceber por que razão Marx afirma que é a música que faz o ouvido musical.

Discografia das Variações Goldberg referida:

Pierre Hantai (Opus 111); Glenn Gould (Sony Classical); Gustav Leonhardt (Deutsche Grammophon); Evgeni Koroliov (Hänssler).



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