Fome(s) zero

Zillah Branco

A grande palavra de ordem do governo Lula é o combate à fome. Como eixo do seu programa de acção tornou-se o símbolo da mudança no Brasil onde, até agora, se cuidou dos malabarismos das bolsas para atrair novos senhores do capital deixando a miséria, já crónica, de dezenas de milhões de brasileiros como um resíduo da história de colonização que parece eterna.

Surgiu o debate, enfeitado por intelectuais que, de cima do muro, citam o velho ditado oriental «melhor é ensinar a pescar que dar o peixe a quem tem fome». Conversa de quem nunca passou fome de verdade, fome que impede o ser humano de se ter em pé, de pensar, sobretudo de alimentar uma esperançazinha de viver. Depois vieram os mediadores, que fizeram ruidosos programas no governo anterior de apoio social que apareceram apenas na dispendiosa publicidade televisiva e viraram pó, dando de barato que «há que alimentar os famintos, que são em número reduzido, apenas entre 10 a 20 milhões de cidadãos e oferecer bolsas de estudo às crianças de famílias pobres» (assim matam três coelhos de uma cajadada dando 15 reais (5 dólares) por criança com o compromisso de que estudem e não engrossem o exército do trabalho infantil denunciado pela UNESCO). Chamam de famintos os que estão com a despensa vazia e fazem de conta que não existe a fome crónica de quem já nasce com carências e cresce marcado pelo subdesenvolvimento. Talvez este raciocínio enviesado derive do eufemismo habitual que substituiu subdesenvolvimento pelo conceito ilusório de em vias de desenvolvimento.

Ninguém quer ser paternalista no Brasil. Até as igrejas, que sempre primaram por tal tendência correspondente à caridade e à generosidade dos que têm mais, hoje democratizaram a maneira de cuidar dos mais necessitados olhando-os pelo prisma da solidariedade e respeitando-os como cidadãos de igual direito. Há uma consciência social que explica como causa da pobreza a exclusão social, a exploração económica, a histórica espoliação praticada pelas elites que se sucederam no poder nacional. Têm fome, primeiro, porque foram roubados nos seus direitos humanos, depois porque não tiveram acesso à segurança social que lhes deveria garantir ensino, saúde, habitação, emprego. Todo o mundo sabe disso, mas se o cidadão não comer 3 refeições diárias a sua consciência vai para o lado da revolta ou da apatia e não será possível fazê-lo acreditar que é um cidadão como outro qualquer. Lula tem razão, é preciso começar por alimentar as pessoas, e até os estrangeiros, como também o empresariado brasileiro, saudaram a iniciativa oferecendo ajuda. Todos sabem também que mercado consumidor só existe para quem maneja algum dinheiro depois de saciar a fome. Deixemos o ditado chinês para a sobremesa, e a culpa do paternalismo para quem está tirando do porta-moedas o tostão que simboliza a generosidade.

Para reduzir a fome imediata é preciso conhecê-la de perto. O presidente conhece isto de gingeira, mas a maioria dos ministros e secretários, e todos os que têm algum rendimento palpável, nunca a viram, nunca lhe sentiram o cheiro, nunca entraram nos seus barracos insalubres, nunca viram de perto mulheres de 30 anos que aparentam 60 e crianças de olhos tristes que não sabem o que é ser gente. Então, Lula levou-os ao interior famélico do Brasil para conhecerem a dimensão do problemaço que será governar democraticamente este país com os seus 170 milhões de almas (com algum corpo por cima).

O programa da Fome Zero não se reduz ao arroz com feijão tradicional, é o conhecimento profundo dos problemas humanos, sociais, de produção, de desenvolvimento. É a fundamentação do novo conhecimento para tornar possível o início de uma administração realmente democrática capaz de coordenar os vários ministérios – que serão frente de luta e não feudos partidários – dentro dos princípios da transversalidade e da integração.


Fome plural


À fome, de barriga vazia, somam-se todas as outras que a acompanham. É fácil relacionar o que se chama fome com as múltiplas carências que o organismo acusa – peso, altura, cor da pele, anemia, fragilidade óssea, etc. – e, um pouco mais difícil, entender a relação directa que tem a fome com os medos que marcam psicologicamente o indivíduo que se sente desprezado e acuado. Também é visível a condição em que vivem os famintos, as dificuldades ou impossibilidades de frequentar escolas ou receber atendimento médico. Menos visível é perceber o reflexo que tem na formação cultural a que está submetido – fome de cultura em liberdade. E esta fome não é exclusiva das camadas sociais mais pobres, talvez até seja mais grave nas populações urbanas com algum ou mesmo muito recurso financeiro.

A Fome de Cultura Brasileira é também antiga, do tempo em que o país começou a investir nas importação de programas estrangeiros feitos especialmente para os povos subdesenvolvidos. Este é um lado da dependência nacional tratado como tabú, porque insistem em confundir a crítica ao lixo cultural que importamos e nos é impingido, com a necessidade de intercâmbio cultural indispensável ao desenvolvimento integrado no mundo – como se toda esta anti-cultura que nos exportam e que muitos reproduzem com imagens nacionais, fosse a expressão do povo de outro país.

A queixa dos brasileiros parecia ser apenas dos mais velhos, dos saudosistas que conheceram uma sociedade mais equilibrada, mais harmoniosa, mais saudável. Com o aumento da pressão dos mil problemas em que hoje as populações urbanas suportam sem ver saída, surdas com tanto ruído, doentes com a poluição e o estresse crescente, apavoradas com tanto crime, desencantadas com tanta impunidade, também os mais jovens começaram a descobrir os encantos da cultura nacional desprezada como fora de moda, ultrapassada, careta (termos preconceituosos que os media divulgam e incentivam para estigmatizar os valores tradicionais). Graças aos defensores da música popular brasileira algumas instituições sobrevivem (sempre com risco de morte quando há mudanças políticas); grupos do velho «chorinho» e do samba reaparecem humanizando a cidade transformada em fábrica de problemas; antigas canções e sambas saudosos são interpretados por especialistas que têm a coragem de desvendar o valor erudito da criação popular; a literatura com o sabor brasileiro vai buscar no fundo da alma e da história a fonte de inspiração; o mesmo renascimento ocorre nas artes plásticas; o cinema traduz a maneira de sentir e de viver da grande população; os pequenos municípios e grupos de moradores lutam pela proteção do património construído que restou; velhos artesãos, ajudados por jovens inteligentes, transmitem a sua arte em cursos organizados. Renasce a cultura nacional, de baixo para cima, polindo o tesouro que formou o brasileiro alegre, cordial, forte, lutador, digno, orgulhoso da sua origem. Apresenta a sua fome de liberdade cultural.


Uma no cravo e outra na ferradura


A revista Princípios, número 67/2002, divulgou importante texto de Samuel Pinheiro Guimarães com fundamentação para ser traçada uma «política cultural eficaz». O autor refere a vulnerabilidade ideológica da sociedade brasileira devido ao facto de que «parte maioritária de suas elites, ao invés de procurar governar para o povo, prefere governar para os interesses internacionais de toda ordem. Desejam ser aceites como representantes de um país normal, de uma sociedade jovem, mas civilizada, que não confronta os interesses das grandes potências e com elas colabora.» Quem já teve o azar de assistir ao Big Brother, fica elucidado a respeito sem necessidade de maiores explicações.

Então, tomemos este exemplo de importação cultural – onerosa, financeira e psicologicamente – que a TV Globo, dando o título de «Big Brother Brasil» entremeia com jornais que mostram a realidade famélica do país e o grande esforço feito por milhares de brasileiros abnegados, apoiados por estrangeiros solidários, por ONGs, Igrejas, partidos políticos de esquerda, movimentos sociais, para salvar a cultura nacional, a juventude, a educação. Neste hábito dos media de dar uma a Deus e outra ao Diabo, com o peso da comunicação social que carrega há dezenas de anos esta poluição mental que apaga a consciência nacional, presta um desserviço ao desenvolvimento do povo brasileiro matando-o de fome cultural. Este despropósito deve ser julgado, à luz do que se faz pelo ensino, pela educação, pelo formação mental dos cidadãos, pela campanha da Fome Zero.

Diz SPG no seu artigo que «a vulnerabilidade ideológica afecta a identidade cultural brasileira. Esta identidade é fundamental quando se admite que a sociedade brasileira se desenvolveu em um território geográfico específico, com uma composição étnica e religiosa distinta, com uma experiência histórica, política e económica única. A consciência disto é essencial para que a sociedade possa encontrar soluções próprias para seus próprios desafios.» E, mais adiante, reforça o conceito de cultura como o elo entre o indivíduo e tudo o que traduz a nação: «Sendo as manifestações culturais o modo como a experiência humana, que se verifica em uma certa dimensão geográfica, se transmite no tempo, a questão da cultura, da produção e da difusão cultural, está estreitamente vinculada à formação e à permanência da nação como conjunto de indivíduos que habitam um mesmo território, compartilham uma experiência histórica comum e que têm a aspiração de construir um futuro comum, ainda que as visões sobre este futuro possam ser distintas».

Não poderemos libertar o cidadão brasileiro da fome crónica mantendo-o subjugado à hegemonia cultural do mercado chamado livre e globalizado, que se sabe de interesse de uma momentânea política governamental norte-americana. Faço a ressalva para não misturar com uma história respeitável e um produto cultural de valor que ainda existe soterrada nos Estados Unidos.

Não podemos educar as nossas crianças formadas com a mentalidade dos Big-Brother ou com o incentivo à violência e ao terrorismo dos filmes programados pelo governo Bush. Estes enlatados que importamos são tão destruidores como bombas de napalm que ficam queimando o solo e tudo que nele se cultiva, por anos a fio.



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