A grande conspiração mediática
Desde há quase dois meses, a Venezuela vive uma situação de greve «geral» - mais correcto seria chamá-la de lock-out - que foi sempre parcial e localizada geograficamente. Por outro lado, mais do que um lock-out - apoiado pelos sindicatos patronais - é o rosto visível de um projecto golpista, sempre em movimento, contra o governo de Hugo Chávez, sonho que os tradicionais donos do país acariciam desde o mesmo dia em que se soube da sua vitória eleitoral.
Sem o apoio patronal, os sindicatos patronais nem teriam sonhado com uma greve. E sem o conivência criminosa e premeditada dos meios de comunicação - que curiosamente nunca estiveram em greve nem em lock-out porque o golpe precisa de agitação política - esta paralisação nunca teria existido. A prova é que há poucos dias declararam uma greve dos transportes, mas como estes são de pequenos e médios proprietários ninguém a seguiu e só pararam aqueles autocarros que, devido à sabotagem na indústria da gasolina, não conseguiram combustível. Esta paralisação definha dia a dia mas, ao atacar a indústria petrolífera - o cérebro e coração da economia nacional -, ameaça fazer regressar o país ao século XIX, como já afirmou um economista antibolivariano. Miguel Rodríguez, ardente partidário do neoliberalismo e ex ministro de Carlos Andrés Pérez foi mais longe: «Nós não podemos sair (do âmbito) da Constituição. Busquemos os votos (para um referendo revogatório) e a oposição que apresente um programa económico. É preciso levantar a greve já. Está-se a destruir a economia. Caiu-nos em cima uma bomba atómica».
Quando terminará? Ibsen Martínez, outro articulista opositor, afirma que a greve nunca será levantada, simplesmente elanguescerá. Assim será, entre outras razões porque os que a convocaram - Carlos Ortega (capo da mafia sindical) e Carlos Fernández (máximo dirigente empresarial) afirmam agora que a não podem parar porque «se nos escapou das mãos». Com esta afirmação coincide Juan Fernández, um dos mais altos responsáveis da indústria petrolífera (agora despedido, como é obvio) e chefe dos grevistas do sector.
No início do lock-out todos afirmaram alegre e descaradamente que a paralisação não afectaria os ordenados dos empregados e que os centros comerciais - obrigados a fecharam - perdoariam os alugueres às respectivas lojas. Mas como nunca pensaram que o «paro» se pudesse prolongar tanto sem obter os resultados desejados – o golpe vitorioso contra Hugo Chávez –, agora, vendo que não têm mais que um sucesso muito parcial mas que conseguiram, graças à sabotagem contra a indústria petrolífera, pôr a economia de rastos, e que haverá milhares de pequenos e médios industriais e comerciantes falidos e dezenas de milhares de despedimentos, desentendem-se do lock-out e obrigam os trabalhadores a pedir férias antecipadas, a aceitar licenças sem vencimento e reduções de vencimentos, que chegam aos 50 por cento. E as lojas? Que se preparem para pagar os devidos arrendamentos porque «o sacrifício deve ser de todos». Lógica: «se não ganhámos esta batalha, que a paguem os trabalhadores, mesmo os que estão connosco».
Guerra psicológica
A presente situação de conflito só tem sido possível pela acção de guerra psicológica desencadeada pelos principais meios de comunicação social. Para além de um ou dois jornais privados que tratam de manter certa isenção informativa, da Venezolana de Televisión e da Rádio Nacional de Venezuela - ambas do Estado, mas de pouco alcance geográfico e frequentemente retiradas do ar por actos de sabotagem - toda a imprensa, rádio e televisão privadas - estas últimas produto de concessões do Estado - lançam sobre a população um bombardeamento implacável e sistemático de mensagens abertas e subliminais de agressão mental e desinformação, mentindo com absoluto descaramento e inequívoca atitude golpista.
Este comportamento, devidamente articulado com os sectores mais reaccionários da Coordenadora Democrática - que responde aos interesse das cúpulas sindicais vendidas ao patronato; de Fedecâmaras, conjunto de grupos empresariais que cresceu à sombra dos negócios feitos com os governos anteriores; e dos militares golpistas que tomaram a Praça de Altamira, na zona este da cidade -, afastou a oposição propriamente democrática e não golpista, e está a provocar fortes perturbações emocionais na população.
Uma bomba relógio
El Nacional, uma das pontas de lança dos golpistas, inclui na sua edição de 25 de Janeiro um texto excepcional da jornalista independente Vanessa Davies, que recolhe apreciações de dois psicólogos. Um deles, Rubén Hernández, sexólogo e dirigente da Associação Mundial de Psiquiatria, depois de alertar para o facto de que se caminha para a falência institucional e que é importante chegar a acordos antes de que se tenham de contar 500 ou mil mortos, vai mais longe e denuncia a existência «de uma campanha de terror psicológico, particularmente preocupante, até ao extremo de que se criou uma situação de pânico colectivo que não nasceu da noite para a manhã.
«Penso – acrescenta Hernández, – que é uma estratégia muito bem desenhada, e de sucesso, porque há gente em paranóia, que se sente ameaçada».
Esta situação agudizou-se a partir de 2 de Dezembro, começo do lock-out convocado pelos patrões e apoiado pelos sindicatos historicamente traidores.
«Que se passará a 31 de Janeiro, quando as pessoas não receberem a sua quinzena? Que se passará com o desemprego?», perguntam estes especialistas.
A resposta é fácil: mais desemprego, mais miséria, mais delinquência, mais frustração colectiva, que, como dizem os especialistas, «é uma bomba relógio». Mas é isto precisamente o que querem os meios de comunicação, enquanto correia de transmissão do pensamento e da acção golpista, a mesma que mostrou do que é capaz no dia 11 de Abril de 2002, quando, de uma só penada, eliminou a Constituição, o Parlamento, o Supremo Tribunal, o Procurador, o Fiscal e todos os outros poderes públicos, e desencadeou uma repressão feroz contra deputados, gente do povo e delegações diplomáticas estrangeiras, e terminou com o «acto patriótico» de retirar o quadro de Simón Bolívar da Sala Ayacucho.
Boatos e intimidações
A classe média tem sido o alvo preferido desta guerra psicológica. As urbanizações do leste da cidade, agora barricadas contra o «perigo chavista», andam especialmente neuróticas e com as bandeiras a meia haste, ninguém sabe muito bem porquê nem para quê, porque as festas com whisky importado de 18 anos continuam no seu ritmo de sempre.
Nos dias anteriores à manifestação bolivariana que se refere mais adiante, correram rumores no sentido de que esta implicava o assalto aos prédios da classe média, sempre fácil de assustar com estes processos políticos. Dizia-se em tudo o que fosse canal de comunicação que o governo tinha comprado de 30 a 40 ou 80 mil sacos plásticos pretos para os cadáveres resultantes do assalto. Os prédios, controlado por militares e paramilitares de última geração, organizaram brigadas armadas para enfrentar os «bêbados bolivarianos».
Num evidente clima do mais tenebroso dos tempos medievais, os que não tinham armas deviam ter azeite à mão para o ferver e atirar pelas janelas sobre os pés descalços bolivarianos. Puseram-se cadeados e correntes de ferro adicionais para impedir o assalto das «hordas bolivarianas». Os condóminos receberam instruções para ficarem fechados em casa e quem não obedecesse era apontado como «maçã podre». Foi assim imposto o estado de sítio e a ditadura… por parte da oposição «democrática».
Tudo em vão. A manifestação bolivariana, totalmente pacífica, já se realizou, reuniu muitas centenas de milhares de pessoas e tudo correu sem incidentes contra as urbanizações de classe média, apesar de rios humanos terem atravessado a cidade em várias direcções passando, obviamente, por essas urbanizações. Houve um só acto terrorista a registar: a explosão de uma granada na manifestação, com saldo de um morto e vários feridos. Foi frente a uma estacão do Metro e não foi surpresa porque os golpistas já várias vezes tinham prometido surpresas no Metro, que sempre se manteve a trabalhar.
Desinformação e mentira
A acção golpista destes meios evidencia-se de mil maneiras. Os efeitos da televisão - que esteve semanas de luto e de repente tirou-o sem explicação alguma - são praticamente impossíveis de combater e a única solução é não os sintonizar, o que não se torna fácil. No que se refere aos jornais, a população teve de reaprender a lê-los. Um título diz uma coisa e o corpo do texto outra diferente. El Nacional, numa primeira página afirma que o paramilitar Soriano é da oposição e na última que é um dedicado membro do oficialismo, e não se sente obrigado a uma rectificação na edição seguinte. Um dia informa que o chefe da Casa Militar renunciou e horas depois vemo-lo junto do presidente, e não há pedido de desculpas. Há meses foi adiantada a renúncia de Alí Rodríguez Araque à presidência de PDVSA; nada disso aconteceu, mas para o jornal foi como se nada tivesse escrito.
Por sistema, minimiza-se qualquer acto de massas dos bolivarianos e leva-se aos píncaros da Lua qualquer reunião de antibolivarianos. O caso mais recente foi no dia 23 de Janeiro, quando os partidários de Hugo Chávez decidiram celebrar com uma marcha multitudinária o aniversário do derrube da ditadura de Pérez Jiménez.
Para quem quis ver, foi uma concentração de proporções gigantescas, como provavelmente não há memória neste país. No dia seguinte, a primeira página do El Nacional dedicava um título de oito colunas a uma notícia relativamente irrelevante do Conselho Nacional de Eleições, fortemente questionado. Não podia, contudo, fugir a uma fotografia da manifestação, na qual se via um mar de gente. À maneira de legenda um cálculo «científico» da assistência: 108 mil pessoas, das quais mais da metade trazida da província. Nas páginas de dentro, desenvolvimento da reportagem e, em caixa, confirmação do «cálculo científico» com infografia e outros detalhes para confirmar o «rigor» das contas. No meio do texto da notícia e sob uma foto pouco esclarecedora finalmente a verdade envergonhada: «centenas de milhares de pessoas exprimiram o seu apoio ao governo».
Outro jornal, se possível ainda mais golpista, navegou nas mesmas águas sujas. Oito colunas de título na primeira página sobre o possível controlo de câmbios. Mais abaixo, a inevitável fotografia da manifestação com uma legenda para sublinhar que aquilo era gente da província. Não foi assim, mas se tal fosse, será que gente da província não é gente? Quanto aos participantes, absoluta unanimidade com o seu colega da capital. O mesmo «numerólogo» fica-se pelos 108 000 manifestantes.
Uma lição elegante
Entretanto, que disse a imprensa de outros países?
The Boston Globe não se envergonha de escrever sobre «a huge rally» (enorme reunião). El Mundo, Madrid, tão pouco amigo de Hugo Chávez, falava de uma «multitudinária manifestação». El Espectador, Bogotá, informava sobre «uma imensa multidão», que consagrava Chávez como um caudilho post-moderno, antiglobalizador. O Estado de São Paulo admitiu uma afluência de «centenas de milhares», enquanto José Francisco Marcondes, empresário brasileiro por esses dias em Caracas, falava numa «passeata que reuniu pelo menos um milhão de pessoas». El Comercio, Lima, do insuspeito Miró Quesada, refere a presença de «centenas de milhares». Clarín, Buenos Aires, dá conta de uma «manifestação multitudinária» e aponta um cálculo de 300 mil. La Hora, Quito, coincide com a estimativa de «centenas de milhares» e o mesmo se pode ler em El Universal, do México ou em El Mercurio, que memórias muito tristes nos trazem do Chile de Allende. Mas El Nacional e El Universal não viram o que testemunharam outros jornalistas mais objectivos, mesmo que não partidários de Hugo Chávez. Houve excepções na Venezuela? Claro. El Panorama viu e foi capaz de admitir a presença de «centenas de milhares» de participantes.
A imprensa venezuelana não gosta destas «dissonâncias» e acusa frequentemente os correspondentes estrangeiros de partidários do «regime» chavista. Esclarecedoramente, Moisés Naím, antibolivariano, escrevia há pouco (El Nacional, 12 de Janeiro) sobre este critério tão estreito e recomendava aos jornalistas locais que em lugar de denunciar os seus colegas e agências de notícias como ignorantes, preconceituosos ou criptochavistas, tomassem em conta que a opinião pública mundial «digere mal a tolerância aos golpes de estado, à desigualdade, aos epítetos racistas, e os jornalistas e meios de comunicação que não sejam absolutamente imparciais nos conflitos que noticiam».