A pretensa crise nuclear
O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, juntou-se anteontem ao coro norte-americano sobre os alegados perigos do programa nuclear da Coreia do Norte.
Numa mensagem à conferência do desarmamento da ONU, reunida em Genebra desde segunda-feira, Kofi Annan afirma que «os recentes desafios aos mecanismos de não-proliferação, principalmente o anúncio da Coreia do Norte, suscitam graves inquietações». Dizendo deplorar a iniciativa da República Democrática Popular da Coreia (RDPC), Annan exorta «fortemente» aquele país «a reconsiderar a sua decisão», considerando que «a única solução viável para este mais recente fracasso para o desarmamento e para a não-proliferação passa por meios pacíficos, pelo diálogo e por um espírito de respeito do interesse mútuo».
Aparentemente, o secretário-geral da ONU considera irrelevantes as reiteradas declarações da RDPC de que o seu programa nuclear tem fins pacíficos, optando por dar crédito às suspeitas dos EUA de que Pyongyang já possui ou está a tentar produzir bombas atómicas, e minimizando os factos que levaram à presente «crise».
De referir que a Coreia do Norte aderiu voluntariamente ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (ao contrário de Israel, que nunca o assinou), e que só se retirou do TNPN após ter sido ameaçada por Washington.
Uma história mal contada
Vale a pena lembrar que foram os EUA quem violou sistematicamente os termos do acordo nuclear que assinou com a Coreia do Norte em 1994.
Segundo o acordo, este ano devia entrar em funcionamento na RDPC uma central nuclear a água ligeira, em substituição da central nuclear norte-coreana a grafite (artigo 1, § 1 e 3). Tal não sucedeu, estando as obras ainda na fase das fundações.
Os EUA comprometeram-se igualmente a fornecer à RDPC 500 000 toneladas de petróleo bruto por ano até à entrada em funções da nova central para satisfazer as necessidades energéticas do país (artigo 1, § 2). Acontece que não só as entregas foram muitas vezes atrasadas como, em Dezembro último, os EUA decidiram unilateralmente suspendê-las. Acresce que os EUA deveriam ainda garantir formalmente à Coreia do Norte que não utilizariam a ameaça nuclear contra ela (artigo 3, § 1), o que foi claramente desrespeitado a partir do momento em que Bush inclui a RDPC no «eixo do mal» e por isso passível de «ataques nucleares preventivos».
Face a esta situação, não é de estranhar que a Coreia do Norte tenha decidido reactivar o seu programa nuclear para fins pacíficos, designadamente a produção de energia, como as autoridades têm sublinhado.
Mais difícil de compreender é que nas instâncias internacionais não se considere inquietante o facto de os EUA possuírem um arsenal de mais de 12 000 bombas nucleares, das quais cerca de mil estacionadas na Coreia do Sul, com uma potência média cada uma cerca de 20 a 30 vezes superior à que os EUA utilizaram no Japão, matando 250 000 pessoas e deixando muitas outras com sequelas para toda a vida.
Crise humanitária
A Coreia do Norte está à beira de uma crise humanitária devido à falta de alimentos que ameaça entre 6 a 8 milhões de pessoas, afirmou, domingo, em Pequim, Maurice Strong, enviado especial da ONU.
Segundo o representante das Nações Unidas, que esteve três dias em Pyongyang, a falta de doações de alimentos por parte dos países mais ricos provoca um risco «sério e nefasto» cujas consequências podem ser catastróficas.
A situação agravou-se no final de 2002, quando os Estados Unidos decidiram suspender a ajuda alimentar à Coreia do Norte, como forma de pressão contra as alegadas «ambições nucleares» do regime norte-acoreano.
Criticando a posição dos EUA, Strong sublinhou que «não se pode transformar as crianças, os velhos e os doentes em vítimas de uma crise política com a qual eles nada têm a ver», alertando para o facto de que «essa assistência é uma questão de vida ou morte para muita gente».
A administração Bush, que começou por negar qualquer relação entre a suspensão da ajuda e a chamada «crise nuclear», mudou aparentemente de táctica na semana passada, oferecendo-se para reiniciar o envio de alimentos e de combustível desde que a Coreia do Norte abandone o «programa nuclear».
Na opinião de Strong, que reuniu com autoridades e visitou áreas que ainda recebem ajuda da ONU e do Programa Mundial de Alimentos, os governantes norte-coreanos estão «preparados para renunciar a qualquer desejo ou intenção de adquirir armas nucleares» e para «se submeterem a inspecções» das Nações Unidas.
Recorda-se que o governo de Pyongyang pretende assinar um tratado de não-agressão com Washington. Esta posição foi reafirmada, domingo, pelo embaixador norte-coreano na China, Choe Jin Su, ao garantir que a crise pode ser resolvida através do diálogo, desde que os Estados Unidos se comprometam a não invadir a Coreia Norte e não impeçam o desenvolvimento económico do país.