Prestige - uma morte anunciada
O acidente do Prestige não é uma catástrofe. Trata-se, isso sim, de um crime programado e previsível. Esta é uma afirmação de Bernardo Bastida Xisto da Confraria de Pescadores de Ferrol, Espanha, durante a audição sobre «Segurança Marítima» promovida na passada semana no Parlamento Europeu pelo Grupo da Esquerda Unitária Europeia.
E ao longo das intervenções dos especialistas convidados de Espanha, França e Portugal, ficou claro que esta afirmação é perfeitamente justificada. Senão, vejamos:
A Comissão Europeia tem um levantamento de 4 000 navios em situação de risco que circulam nas águas mundiais. No entanto, as estruturas sindicais dizem-nos que 17 000 navios de mais de 70 metros estão em muito mau estado.
Anualmente, naufragam 110 a 130 navios, com as respectivas consequências ambientais e de perdas humanas.
Dos 60 000 navios que representam a frota da marinha mercante mundial, 18 000 (50% da tonelagem mundiais) têm bandeira de conveniência, o que significa que o seu proprietário está num outro país, que as condições de controlo de segurança são menos exigentes e mais flexíveis, que os impostos são mais baixos e que se poderão permitir propiciar condições de trabalho aos seus marítimos que, muitas vezes, raiam a escravatura.
Existe uma total confusão no sector, o que torna muitas vezes quase impossível aplicar penalizações em caso de acidente. Por exemplo, no caso do Prestige, a propriedade é de uma empresa da Libéria (seu único património) e que era igualmente proprietária do «Mar Egeu» que se afundou em 1992 junto à Coruña; o armador é grego; a bandeira é das Bahamas; os trabalhadores filipinos e romenos; a seguradora inglesa.
E, se o transporte marítimo conheceu um aumento de 430% nos últimos 30 anos, constatou igualmente uma redução de 30% dos seus custos nos últimos 10 anos.
Conclusão: o lucro máximo para alguns poucos, e a miséria para muitos.
Mas, como é evidente, estes dados não apareceram depois do acidente do Prestige ou mesmo do Erika. Tudo isto é conhecido à muito tempo. E assim podemos perguntar-nos o que têm andado a fazer os governos dos Estados-membros e mesmo a maioria dos deputados do Parlamento Europeu.
Quando há um acidente, todos se aprestam a fazer grandes declarações para o presente e o futuro. Mas quando está na sua mão decidir, o que fazem?
É verdade que foram aprovadas algumas medidas e que estão mencionadas em artigo publicado em Dezembro mas, alguns aspectos estão ainda em branco: porque é que não reduziram a idade de vida de um navio? porque é que não aceitaram a proposta de reforço das condições sociais dos trabalhadores marítimos e de participação das suas estruturas representativas? porque é que não cumprem as inspecções exigidas em quantidade e qualidade? porque não atacaram o sistema das bandeiras de conveniência, quando, mesmo os navios de propriedade de empresas da UE o aproveitam? porque não legislam de modo a tornar clara a entidade responsável em caso de acidente ou quando os navios são abandonados com a sua tripulação a bordo em portos da UE (29 em França entre 1997 e 2000)? porque não proíbem a entrada/passagem nas águas sob jurisdição dos EM dos navios de risco? porque delegam a sua função de certificação dos navios a empresas que trabalham simultaneamente para os armadores?
Pode ser pior
Mas o mais grave, é que não só não tomam todas as medidas possíveis e exigíveis como se preparam para tomar outras medidas que podem agravar a situação. Trata-se da abertura ao mercado dos serviços portuários que tem como objectivos criar a concorrência entre portos e dentro dos portos.
Com a habitual caça ao lucro fácil e rápido que caracteriza a esmagadora maioria da iniciativa privada, será no mínimo duvidoso - se considerarmos a enorme pressão que já hoje sofrem os inspectores por parte das administrações dos portos - que a sua principal preocupação não seja a de despachar os navios o mais depressa possível de forma a aumentar a sua rentabilidade. Como impedir que a privatização dos serviços de pilotagem não atente contra a sua obrigação de participação quando constatam anomalias com um navio. Se o trabalho de carga e descarga pode passar a ser feito pelo próprio pessoal do navio - que como se sabe, na sua maioria, não tem a formação necessária (uma empresa de Bilbao contrata pastores das Honduras que nunca viram o mar) - como assegurar que estas se passarão sem incidentes.
Como disse o camarada Joaquim Miranda na sua intervenção, há que organizar, disciplinar e responsabilizar o sector.
Mais uma vez se confirma a importância de um bom serviço público.
Para o bem de todos nós - maré negra, nunca mais.