«Justiça e Paz» cruza posições

Jorge Messias

Não será esta a primeira vez que a Comissão Nacional de Justiça e Paz, ao mudar de direcção, troca radicalmente o sentido da orientação anterior. No seu curto historial podem recordar-se mandatos progressistas, conservadores ou de simples renúncia à intervenção social. Não escandaliza, portanto, que fases tão distintas entre si como as da CNJP presidida por Mário Pinto, por Leite Garcia ou por Bagão Félix, se tenham sucedido no tempo. Tal com é igualmente natural que nenhuma dúvida possa ser alimentada em relação à importância que essa estrutura conserva, quer a nível da igreja nacional, quer no plano da instituição católica universal quer como grupo de pressão do poder político. O caso mais recente deste fenómeno a que nos referimos diz respeito às posturas antagónicas que a CNJP sucessivamente vem assumindo face ao chamado «Código do Trabalho». Escreveu Bagão Félix, ainda há poucos meses (não era ele ainda ministro e já se estudava o texto do novo regulamento laboral): «A defesa intransigente do direito à vida, a justiça como valor ético, o poder concebido como valor de serviço, a doação ao outro como trave-mestra da relação solidária, o respeito pela diferença, a abertura ao universalismo - podem e devem unir os cristãos para além do que, livre e diferentemente, exprimem como eleitores e participantes na vida democrática.» («Ex» - Agência Ecclesia, 29.01.02, Nº. 852, pag. 7.) Neste espírito de afirmação ética - proclamam bispos e patrões - terá sido elaborado o «Código do Trabalho».

Meses depois desta tomada de posição do presidente da CNJP, Bagão Félix foi convidado e aceitou participar no Governo direita/direita. Após um breve período de incubação surgiu, então, o ante-projecto do Código, com desenvolvimentos cuidadosamente programados. Ao subir a ministro, Bagão Félix demitiu-se ostensivamente dos cargos de direcção da sociedade civil, como lhe competia. Da noite para o dia, deixou os compromissos do grande capital, do comércio e da igreja e transformou-se em homem do Estado. A Conferência Episcopal nomeou, de imediato, uma nova direcção para a CNJP, presidida por um médico católico, o dr. Armando Sales Luís. O elenco entrou em funções nos inícios de 2003 e deu lugar a reacções inesperadas, relativamente ao novo código. Segundo transcrições de órgãos da Comunicação Social (Expresso , 11.01.03), o dr. Sales Luís terá denunciado em termos duros a nova lei: «A proposta do Código do Trabalho é imoral, por confundir o conceito de "flexibilidade", natural numa sociedade em rápida evolução tecnológica, com uma permanente precariedade de trabalho... O modelo neoliberal preconizado no documento já demonstrou não ser gerador de riqueza e será factor de instabilidade social e de agressão à própria família...». Se virmos bem, por tudo isto perpassa uma turbulenta linha de contradições. «A Igreja não é uma democracia», como disse o Papa e confirmou Ratzinger. Os seus fundamentos são dogmáticos. As suas direcções a todos os níveis não são eleitas mas nomeadas pela cadeia hierárquica. Recordemos, neste quadro, que Bagão Félix, um mês antes da denúncia feita pelo dr. Sales Luís, era presidente em funções da CNJP. Logo, a declaração deste dirigente católico, recentemente nomeado pela Conferência Episcopal, não é de importância menor. A questão do «Código do Trabalho» deu origem a que dois órgãos dirigentes sucessivos e responsáveis, nomeados pela mesma hierarquia, subordinados à mesma escala de valores, entrassem em colisão. A sociedade inferior da igreja portuguesa agita-se e contesta a sociedade superior. Provavelmente, tudo reentrará numa pasmada tranquilidade. Mas houve um pequeno sobressalto de percurso. A verdade é que «a Terra move-se!» Os bispos, os patrões e Bagão Félix publicaram notas e comentários alinhados com o capital, contra o trabalho e a democracia. Ofende-os, por outro lado, ver católicos violarem, à margem da hierarquia, a regra de oiro dos jesuítas: perinde ac cadavre (sê como um cadáver nas mãos dos teus superiores!) Mas instituições laicas, mais ligadas às terríveis realidades do povo português, ao desemprego, à ignorância e à miséria, à aproximação dos ideais cristãos a uma sociedade mais justa, terão sempre uma palavra a dizer.



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