Uma gota de água no Oceano
Uma abnegada vontade de ultrapassar as dificuldades por puro amor à arte, e o apoio determinado do Município de Almada ao Teatro, são a receita do sucesso da Companhia de Teatro de Almada. A celebrar 33 anos de vida, e na véspera de inauguração de novas instalações criadas pela autarquia, é o momento de fazer um balanço do trabalho. Na companhia desde a primeira hora, juntamente com muitos outros actores e profissionais do espectáculo, hoje consagrados, o director da Companhia, Joaquim Benite, conta-nos como têm sido três décadas de lutas pelo futuro do teatro em Portugal.
O futuro somos nós que o fazemos
Avante!: Que balanço fazes deste 30 anos de actividade, 25 deles em Almada?
Joaquim Benite: Ainda não estou em condições de fazer um balanço apesar dos trinta anos que tiveram várias etapas, e espero ainda comemorar a abertura do novo teatro. Importante para nós é a existência da Companhia, a sua vocação criativa e essencialmente o projecto de Almada que, apesar das dificuldades iniciais, está hoje totalmente conseguido: conseguimos um público estável e uma grande integração na comunidade de que é prova o Festival Internacional de Teatro. Criou-se uma grande necessidade de ver teatro, o que é muito raro neste país. Por outro lado apoiou-se e ajudou-se a criar mais companhias na cidade. Muitos formaram-se aqui, outros frequentaram os nossos cursos. É um projecto ambivalente de criação artística e de animação à custa de muitos esforços, ultrapassando obstáculos que só uma equipa muito boa consegue.
É um grande trabalho de equipa?
Estamos, alguns de nós, juntos nisto há 20, 25 anos, temos aprendido com a prática e estamos muito preparados. Sei no entanto que uma cidade como a de Almada é uma gota de água no oceano. Em Portugal quase tudo se fica a dever ao resultado de iniciativas individuais. Almada é muito importante porque é o exemplo de que é possível com parcas condições, pouco dinheiro. Este Teatro Municipal era o antigo mercado abastecedor, sem quaisquer condições, e foi transformado numa sala acolhedora. Tem sido um pequeno teatro mas com um importantíssimo papel. E há outra coisa: o futuro somos nós que o fazemos. Não podemos ficar à espera das coisas, somos nós que as temos de construir e não nos devemos impressionar com as modas.
Na escolha dos temas e das peças, nota-se desde o princípio da Companhia uma grande preocupação com a abordagem da realidade. De Bertold Brech, por exemplo, a Os directores. Pode-se dizer que existe um fio condutor entre as escolhas que fazem?
Exactamente. Por exemplo, nos textos clássicos, toda a Europa faz Brecht menos em Portugal onde se faz muito pouco. Se fores a França encontras três Mãe Coragem em cena. Em Portugal quase não se faz. Há quem se desculpe dizendo que como já se fez, agora não se volta a fazer. Quando queremos abordar a realidade, a cronologia não faz sentido. Há peças do Shakespeare que são mais actuais que as peças que se escrevem hoje. A nossa escolha tem muito mais a ver com o que consideramos a actualidade. Hoje, parece existir uma combinação geral para o não-pensamento. Para se acomodarem aceitando as coisas sem passar por nenhum filtro crítico.
Como é que isso pode ser combatido?
Penso que um teatro que faça as pessoas pensar nas coisas é um teatro que tem um papel revolucionário. O importante é excitar o pensamento. Mas atenção: o pensamento não é fazer propaganda nem dar às pessoas esta ou aquela ideia. É tentar que elas reflictam, levá-las a colocar os problemas. Nós fazemos um teatro que coloca problemas. Claro que isto não traz um público tão grande como o do Big Brother ou a TV. A televisão está hoje num estado em que os programas de massas são programas que não têm qualquer papel cultural. O teatro não pode nem deve acompanhar esses fenómenos. Deve diferenciar-se deles e ser uma alternativa social para os espectadores. O que define o carácter cultural de uma obra é a ideologia da obra. O que é do povo não é o que tem como público o povo mas o que fala dos seus interesses. Há que voltar ao teatro que na civilização ocidental sempre teve a mesma função: ser um fórum onde se discute e reflecte sobre os problemas reais. Não devemos apoiar o populismo. Lénine, quando se tratou dessa questão, disse que gostava mais do poeta Pushkin, em vez de apoiar a cultura populista. Os programas populistas têm como função perpetuar a incultura e a alienação das massas.
Como é que têm o teatro sido tratado pelos governos deste país?
No PS, com Carrilho, embora não concorde com muitos dos aspectos da sua política, havia um plano e uma rapidez de decisão, como foi a intenção de criar uma rede de teatros municipais, por exemplo. Mas foi sol de pouca dura. O projecto foi interrompido com a saída do ministro. Para o seu lugar veio outro, também do PS, que realizou uma política de destruição sistemática de muitas das iniciativas anteriormente avançadas. Com o PSD/PP estamos ainda numa fase em que ministro da tutela diz que está ainda a estudar a situação. Em Portugal, os alunos estudam, de Garrett, o Frei Luís de Sousa, e quase nunca vêem as peças representadas. Enquanto não houver uma ligação entre o Ministério da Cultura e da Educação, há uma parte do serviço público do teatro que não se cumpre. E há que apoiar o teatro em todas as suas vertentes. Devem-se fazer selecções, não por compadrio mas de acordo com critérios justos.
É importante a colaboração entre o poder central e as autarquias para o desenvolvimento do teatro?
A colaboração real do poder central com o poder local tem permitido desenvolver toda esta actividade. É preciso que as autarquias, ao exemplo de Almada, tenham a qualidades de serem fortes motores de pressão sobre o Governo e que não se limitem a aceitar os subsídios. Têm que mostrar trabalho, como se passa aqui, para que depois possam exigir os meios de poder central.
Vivemos num tempo dominado pelo neoliberalismo onde cada vez é maior o desprezo pela condição humana. Como vês o mundo e o teatro do século XXI, e o futuro da Companhia, tendo em conta que estão quase de malas feitas para as novas instalações?
Ouve-se muito dizer nos dias de hoje que chegámos ao fim da história, não é nada de novo. Já se dizia o mesmo no século XIX, após a queda da Comuna de Paris. Também nesse tempo se disse que o comunismo estava acabado, que nunca mais voltaria, que quem era marxista era antiquado. Depois, em 1917, levaram com a revolução russa de Outubro e por aí fora. A história nunca acaba. Por isso tenho esperança, apesar da força que têm hoje os meios de manipulação, que as consciências despertem. Isso já se passa fora da Europa. Na América Latina, as ideias progressistas estão a ganhar uma força e influência extraordinárias: pela primeira vez o Brasil têm um operário presidente. Não é a classe operária no poder mas de qualquer forma é bastante significativo. O liberalismo leva às maiores dificuldades sociais e a uma destruição completa de tudo o que o ser humano possa ter de bom. Como tal, tem que ser superado e combatido. O nosso dever é continuar a denunciar essa realidade e é nesse sentido que temos o programa para a temporada de 2003. Tem que haver um teatro de qualidade para toda a gente.
História de uma excepção
Começou em 1970, no Campolide Atlético Clube com o nome Grupo de Teatro de Campolide. Numa secção de animação cultural, um grupo de jovens decidiu fazer teatro. Estrearam a primeira peça em Março de 1971, O avançado centro morreu muito cedo de um autor argentino que já abordava a alienação que gera o futebol. Ao grupo amador, em 1972, juntou-se Virgílio Martinho com a adaptação de Dom Quixote de António José da Silva (ver foto). Passou a ser o dramaturgo residente na companhia. «Foram tempos difíceis onde se tentava contornar a censura para fazer chegar ao povo formas de tomarem consciência sobre a realidade», contou-nos Joaquim Benite. Empenhados noutros tipos de tarefas nos anos da revolução, regressam em 1977 com a primeira peça como profissionais: 1383, no Teatro da Trindade. Em 1978 passam para a Academia Almadense dando início à relação com a autarquia de Almada, que desde a primeira hora deu todo o apoio. Em 1988 é cedido pela Câmara o espaço do velho mercado de Almada, onde se instala o Teatro Municipal. Agora é tempo de fazer as malas; um novo espaço está quase concluído para acolher a Companhia.
Temporada 2003
2003 vai ser um ano em cheio para os amantes de teatro de qualidade. Clássicos universais como Tchékov com As Três Irmãs já em cena, Beckett, Corcunda por amor de Almeida Garret, Paolo Paoli de Adamov ou a reposição de O carteiro de Pablo Neruda são apenas algumas das obras que estarão no palco em Almada. A PazSobre os rios da Babilónia de Borges coelho, peças que abordam a problemática da guerra vão também a cena. Isto tudo e mais na sala principal. Na sala Virgílio Martinho vão suceder-se vários espectáculos para a infância, entre eles O barbeiro de Sevilha e Chá doce, encenadas por Teresa Gafeira, para além de um rol de peças e temas que completam esta rica temporada em Almada.